emulando

Não há realidade, só filmes
por Nikola Matevski

Jug Jugoistok, de Milutin Petrovic (Sérvia, 2005)

Jug Jugoistok significa Sul Sudeste, posição geográfica da Sérvia na Europa. Também representa um antagonismo a North by Northwest, título em inglês do filme conhecido no Brasil como Intriga Internacional. Justamente, uma das primeiras imagens do filme de Milutin Petrovic é diametralmente oposta ao famoso plano que encerra o filme de Hitchcock: um trem sai de um túnel. O efeito também é contrário porque nos induz à morte e à loucura que ocupam a mente de Sonja Savic, o inverso da vitalidade e do sexo sugerido entre os personagens interpretados por Cary Grant e Eva Marie Saint. O pesadelo que atormenta Sonja Savic é uma constante não alterada no percurso pelos valores, instituições, conflitos e espaços da Belgrado pós-comunista. A paranóia é um estado imutável e constitui a essência do retrato que Petrovic faz sobre a vida em seu país, lugar subjugado por vinganças políticas, nacionalismos seculares e esperanças de prosperidade na União Européia.

O ponto de partida é a visita da atriz e musa iugoslava oitentista Sonja Savic a Belgrado. O detetive Nedeljko Despotovic é designado para investigar o desaparecimento da pequena filha de Savic. Ela, no entanto, nega a existência da criança. Ao olhar esse mundo, Petrovic enxerga filmes, como se não houvesse distinção entre cinema e a realidade. Por isso, a narração de Jug Jugoistok sempre pisa em referências para construir camadas, tentando transformar o cinema de gênero em vanguarda, que vai de Hitchcock a Godard, de clássicos do horror sérvio (Davitelj protiv Davitelja) ao teatro de bonecos. E, se não vemos uma assinatura absolutamente distinta que se alimenta de outras fontes, como em Brian de Palma, certamente estamos diante de um objeto estranho e rebelde, cuja profusão de referências representa uma revolta aos clichês da cinematografia da região e, mais que isso, abriga um recado político cristalino.

Intriga Internacional é sobre a perseguição de um homem que não existe enquanto duas pessoas soltam faíscas de tesão e enfrentam vilões anônimos; é algo entre a comédia romântica e o filme de ação político. No mcguffin de Jug Jugoistok personagens deslocados estão confinados em um thriller psicológico, procurando a criança desaparecida que não existe (o que também é um espelho de Bunny Lake Is Missing de Otto Preminger). Já os vilões são apontados com dedo: o serviço secreto ainda ativo, herdado do comunismo, e, depois, do regime de Slobodan Milosevic. As aparições do líder desse grupo, no papel de Purisa Djodjevic, cineasta veterano do cinema iugoslavo, têm eco em Fritz Lang de O Desprezo. A fala poliglota, que enuncia frases sem muito sentido aparente (referências ao cinema clássico) reitera a dramaturgia “mal acabada”, artificial, calcada na improvisação e no uso de não-atores. Quase todos os personagens são interpretados por cineastas locais, até mesmo os figurantes (uma cena rodada em sala de aula coloca atrás das carteiras uma nova geração de artistas de vinte e poucos anos). O procedimento também contesta o chavão local sobre a suposta tradição do cinema iugoslavo como um “cinema de excelentes atores”.

A cidade de Belgrado é outro personagem, exaustivamente explorada em sua arquitetura e monumentos. Os enquadramentos reforçam a grandiosidade dos espaços, todos subversivamente povoados por fantasmas (novamente Djordjevic) e pela paranóia por eles causada. É patente o uso do edifício do Ministério da Sergurança Nacional – notável edição do modernismo arquitetônico sérvio de Nikola Dobrovic – cujas ruínas, reminiscentes do bombardeio da OTAN contra a Iugoslávia, ainda são o palco para o acerto de contas entre o velho e o novo. O resultado da fusão desses elementos causa estranheza, reforçada pela trilha sonora lenta e minimalista que promove encontros climáticos entre instrumentos de cordas e sopro.

O gênero, portanto, é não é um objetivo final, mas um ponto de partida para experimentação e apropriação de elementos alheios à convenção de thriller. A resolução da trama, por exemplo, pousa na narrativa como uma nave alienígena: um falso final feliz exposto por meio de clipe musical encenado com títeres-personagens de uma popular série humorística da tevê local. Está lá a sátira dos principais atores políticos dessa Sérvia paranóica de Petrovic. Sonja Savic, porém, não resolve seu pesadelo, mas encontra aquele de Stalker de Tarkovski. “Não um filme, mas uma série Stalker poderia ser rodada aqui”, fala uma das personagens.

Rodado em digital, 4:3, baixíssimo orçamento, Jug Jugoistok é tanto mais uma ovelha negra se pensarmos no contexto de produção local. Graças a Emir Kusturica, não apenas a Sérvia, mas os Bálcãs tornaram-se identificáveis com certos maneirismos do cineasta – uma sensação de delírio que permeia as situações e seus personagens, a encenação com jeito de circo, necessidade de afirmação de uma cultura rural ou folclórica. Seria tolo e inútil pensar se essa representação "é ou não é real" – e essa certamente não é a intenção aqui – mas vale apontar que ela aparentemente tornou-se predominante (se não única), eventualmente ajudada por alguns personagens brutalizados dos filmes de Goran Paskaljevic e alimentada por concursos de produção locais (que certamente não têm espaço para um objeto estranho como Jug Jugoistok). Nesse sentido, é curioso que Petrovic, nascido em 1961, seja percebido como um cineasta jovem em ascensão – o que nos diz algumas coisas sobre querer fazer filmes políticos na Iugoslávia dos anos 90.

Abril de 2008


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