in loco - cobertura dos festivais

Jovem Yakuza (Young Yakuza),
de Jean-Pierre Limosin
(França, 2007)
por Paulo Santos Lima

Yakuza-vérité

O “jovem yakuza” do título não se refere necessariamente a alguém específico, mas ao que seria um jovem yakuza hoje, ou o que é, em contexto mais amplo, a yakuza. Jean-Pierre Limosin volta, aqui, ao tema da juventude perdida que ele já havia tratado em Olhares de Tóquio, mas alarga o foco para outro de seus temas, a máfia japonesa. Faz, assim, uma relação entre coisa e outra, pois a crise pela qual passam os clãs no Japão atual pode ser vista através da mentalidade desta juventude, um tanto perdida de projetos e bastante entregue à delinqüência. Ao criar uma dialética entre ambos – e também na ambigüidade que acaba resultando seu projeto de documentário que acaba sendo bastante ficcionalizado -, Limosin apresenta um filme interessantíssimo que mostra, ineditamente, a yakuza como lugar de formação do cidadão japonês, de construção de um caráter.

E aí vem a providencial pergunta: a yakuza é, de fato, tão formadora de princípios, tão cidadã? A história (e Kinji Fukasaku, na genial série de longas The Yakuza Papers) nos confirma que sim, uma vez que os clãs surgiram como resposta (“política”, até) à desairosa estadia norte-americana em solo nipônico no pós-Segunda Guerra Mundial, momento de humilhações e outros desconfortos. Desse modo, a yakuza fez parte da reconstrução do país sobre as cinzas da guerra – mesmo tendo, depois disso, muito se desvirtuado, com o crime organizado tornando-se uma presença cotidiana nas famílias, lutas pelo poder etc.

Limosin pega uma yakuza ideal, atendo-se ao clã gerenciado por M. Kumagai, que é um humanista, um grande intelectual e homem dos princípios. Se é interessante o interesse que Limosin parece ter à filosofia deste clã, é também bastante louvável que seu filme não julgue os recrutas desertores (eles, meio que parte de um todo maior sugerido pelo filme, que é a juventude japonesa atual), jamais taxando-os como idiotas, ingratos ou algo assim.

O filme inicia-se alternando M. Kumagai e o delinqüente Naoki, que ingressa para a organização a conselhos de sua preocupada mãe. Com a deserção de Naoki, que simplesmente some do filme, sob mistério absoluto, a atenção direciona-se sobretudo para Kuamagai – o que é bastante interessante, uma vez que ele professará a favor das normas da organização e será um ótimo “pai”, compreensivo com as fraquezas de seus filhos (fraquezas, sim, uma vez que, deserção a ser feita, o correto seria um aviso prévio do dissidente, algo que, parece, não é comum ocorrer).

O clã, no correr do filme, será mostrado em registro bastante objetivo e cirúrgico como uma nova casa: um local de disciplina, mas bastante saudável, tão militar, hierárquico, quanto pai, irmão, afeto, luz e cidadão. Uma ideologia que está fenecendo – e esta sim é uma dor registrada no filme, mas dor de Kumagai, não necessariamente do filme. É nesse registro complexo, repleto de elementos distintos que se somam para vermos um painel interessante sobre o Japão atual, numa crise de princípios velada por um estado de coisas que não consegue substanciar as experiências, que o filme mostra-se interessante como exercício estilístico.

M. Kumagai é o lado mais documental, falando muito para o extracampo a alguém que possivelmente o está entrevistando. Naoki colore mais a narrativa, sendo seguido por essa mesma “câmera documental”, mas posicionando mais como um personagem de trama (como saído de um filme de Gus Van Sant, só que mais falante). O registro frio sobre certas passagens (como o sumiço de Naoki) contrasta com cenas como a da balada, multicolorida, câmera agitada, tornando sensorial a experiência dos jovens perdidos. O rap, aliás, é um elemento-síntese no filme, que volta e meia aparece nos momentos de lazer da rapaziada que brada um “the motherfucker Tokyo” em meio à letra em japonês, dizendo que antes era tudo melhor e agora o verão não é mais o mesmo... uma falta de horizonte avizinhado ao que Zygmunt Bauman fala em seus estudos sobre a modernidade.

Limosin, formalista extremo, acredita na estetização das imagens, e é notável como o anti-realismo é bastante presente neste “documentário” (sim, a cada olhar, no avanço das cenas, as aspas tornam-se necessárias). Teremos algumas situações bastante dramatúrgicas, como quando alguns yakuzas vão à casa da esposa de um cadete preso por extorsão (o que seria imperdoável para uma família impiedosa, na tradição dos filmes de yakuza, mas não para o distinto M. Kumakai) para lhe oferecer ajuda enquanto o rapaz está em cana. Claro que desde Flaherty conhecemos o caráter encenado do documentário, mas aqui, por força da decupagem, do tempo dado à cena etc, a imagem parece bastante ficcional. Mas, afinal, não há dúvida de que essa yakuza formadora do cidadão japonês é tão desconhecida quanto era a vida dos esquimós, de Nanook e os seus, em 1922.

Nesse processo documental-ficcionalizado, teremos pelo menos um momento soberbo, quando M. Kumagai é afastado do posto de comando: ele meio pasmado e ao mesmo tempo bastante firme, reto, sentado no banco de trás de sua limusine, praia ao fundo dando a devida dimensão da inexorabilidade do tempo e novo mundo. Agora, os clãs são gerenciados como empresas, e M. Kumagai terá de ceder seu posto honrado há tantos anos a uma força maior e invisível. Jovens perdidos e yakuza colocam-se na mesma situação marginal, com um Estado que não é nem mesmo padrasto, que não cuida dos primeiros (daí eles recorrerem às máfias) e persegue a segunda (como bem questiona um cadete a um superior, “nós somos humanos também; por que o governo nos persegue?”).

Nessa negligência do Estado, que a horas tantas Jovem Yakuza evidencia, há toda uma resposta ao que já era comentado desde os tais Yakuza Papers e outros grandes filmes que Kinji Fukasaku rodou nos anos 70, que mostravam a fera ética de um homem da lei contra yakuza e toda uma crise moral institucional generalizada. Jean-Pierre Limosin, cineasta de estilo bastante pós-moderno, coalhado de referências a outras obras cinematográficas, parece aqui, ao trazer esses dados reais e emular o documentário (mais o de Rouch, de um tipo de cinema-verdade já reprocessando Flaherty etc), parece situar sua criação em outro patamar, ou justificar o seu cinema.

Assim, ser afinado com a yakuza, guerras e crises juvenil-existenciais vem de uma necessidade, necessidade do mundo, da história, do momento em que esses filmes são feitos. Manifesto acerca do fim de uma era, Jovem Yakuza é também o manifesto de um cineasta, de sua criação.

Novembro de 2007

editoria@revistacinetica.com.br


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