in loco - II jornada de cinema silencioso
Duas ou três coisas que eu sei sobre ela (a
Jornada) por Lila Foster Trabalhar
numa Cinemateca não é tarefa fácil. Ver-se diante de um negativo original deteriorado,
matriz única de um título, não é uma experiência nada confortável. O lugar mais
triste da Cinemateca Brasileira com certeza é a chamada UTI, um arquivo no qual
materiais em processo avançado de deterioração são armazenados: o forte cheiro
de ácido acético faz com que os olhos comecem a lacrimejar em alguns segundos.
A consciência trágica do limite físico de um material fílmico traz uma noção muito
mais complexa do que seja a existência de um filme. De forma imediata, ele existe
nas telas, mas uma perspectiva um pouco mais longa (20, 60 ou 120 anos) exige,
primordialmente, a consciência de salvaguarda de matrizes, estrutura de armazenamento
e conservação e o acesso ao que foi preservado. O trabalho
cotidiano numa Cinemateca implica em lidar com todas essas dimensões e fazer com
que os filmes sobrevivam, que as matrizes possam ter boas cópias de difusão, que
os títulos pouco vistos ou esquecidos sejam restaurados e projetados, que os documentos
de época sejam também preservados para uma maior compreensão da recepção dos filmes,
da atividade dos realizadores, da política cinematográfica. Cada uma dessas atividades
implica em muito, muito trabalho (e dinheiro...). Esmiuçar cada uma delas talvez
fosse necessário para que o público em geral entendesse que a amplitude desse
trabalho implica em restrições e impossibilidades. Conviver com esse enorme acervo
de filmes num país como o nosso é uma experiência incongruente, estranha, que
une sentimentos conflitantes, díspares e, por que não, angustiantes. Talvez
por isso, internamente, na Cinemateca Brasileira, a Jornada de Cinema Silencioso
seja um respiro. Não porque o trabalho diminua, muito pelo contrário: em esquema
de mutirão, todos os setores se esforçam para que todas as funções sejam cumpridas.
Cópias que chegam de outras cinematecas sejam revisadas; os letreiros anotados
e traduzidos; textos para o catálogo sejam escritos, filmes sejam telecinados
para que os músicos possam compor suas trilhas – sem falar em toda a parte prática,
financeira, de criação do site e divulgação, tráfego de cópias... Mas todo o esforço
coletivo gera a melhor ansiedade possível: a de assistir aos filmes e ver o público
enchendo as salas de cinema. Mas, o melhor de tudo mesmo
é assistir a algumas sessões seguidas e voltar para casa acompanhado de um colega
de trabalho; falar sobre como é lindo e dramático o final de Lucky Star;
assistir em movimento, na tela, a um filme revisado em mesa enroladeira ou um
filme restaurado pelo Laboratório da Cinemateca; entender o esforço de outras
Cinematecas na preservação dos seus títulos (todos os filmes projetados foram
restaurados, com esforço também, por cinematecas do mundo); e chegar no trabalho
no dia seguinte e discordar de um ou outro acompanhamento musical, bolar estratégias
para assistir a tudo que for possível, ver o corpo funcional em peso nas salas
de cinema. A alegria vem de perceber que esse ciclo complexo
de um filme se completa e que todos participam disso. Para quem trabalha na Cinemateca,
a Jornada concretiza um esforço cotidiano de manter o cinema vivo. Nem sempre
é fácil, porque a vontade é que nenhum título desapareça, que todos filmes possam
ser vistos e que o público reconheça a importância dessa instituição. Na Jornada,
isso tudo acontece e é uma sensação maravilhosa. Meus companheiros de trabalho
que o digam. Agosto de 2008
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