in loco - cobertura dos festivais
Jorge Mautner, o Filho do Holocausto,
de Pedro Bial e Heitor D'Alincourt (Brasil, 2012)
por Fabian Cantieri
Sócrates é brasileiro
"Os homens nasceram em um mundo que contém muitas
coisas, naturais e artificiais, vivas e mortas, transitórias
e sempiternas. E o que há de comum entre elas é
que aparecem e, portanto, são próprias
para serem vistas, ouvidas, tocadas, provadas e cheiradas, para
ser percebidas por criaturas sensíveis, dotadas de órgãos
sensoriais apropriados. Neste mundo em que chegamos e aparecemos
vindos de lugar nenhum, e do qual desaparecemos em lugar nenhum,
Ser e Aparecer coincidem. A matéria
morta, natural e artificial, mutável e imutável,
depende em seu ser, isto é, em sua qualidade de aparecer,
da presença de criaturas vivas. Nada e ninguém existe
nesse mundo cujo próprio ser não pressuponha um
espectador. (...) A pluralidade é a lei da Terra".
§1 Hannah Arendt, "A Vida do Espírito"
Na
coletiva
de imprensa sobre Jorge Mautner, O Filho do Holocausto
no Cine PE desse ano, Pedro Bial lembra que um dos grandes
“cliques” para fazer esse filme veio com as Olimpíadas
de Pequim em 2008, como exemplo de uma “exibição
espetacular, de aniquilação do indivíduo,
que o mundo todo aplaudiu de pé, cego diante da estética
fascista que se apresentava ali”. E que por isso mesmo “nunca
será repetitivo exibir as imagens do nazismo e do holocausto”
pois Auschwitz é algo “insuportável de lembrar
mas nós somos interditados de esquecer”. Jorge Mautner
é um dos homens que enxergou no Brasil uma saída
para esse trauma. Mautner é filho de pai judeu-vienense
e mãe austríaca que fugiram ao Brasil enquanto boa
parte da família era dizimada nos campos de concentração.
Sua irmã não conseguiu vir e, com isso, um trauma
profundo abateu sobre sua mãe. Mautner, então, foi
educado até os sete anos por sua babá e com ela,
começa a abrir os olhos para o candomblé. Nasce,
desse eixo tão curto e denso, uma proposição
política que ele não só carregará
para a vida como a fará transbordar para toda a sua obra.
Nasce uma poética da miscigenação.
O deslocamento de Mautner é a metáfora de um movimento-resposta
ao mal do século XX. Da introdução de Hannah
Arendt em A Vida do Espírito, aonde se chega é
que, se a matéria morta depende em seu ser da presença
de criaturas vivas, logo não há ser sem sua concomitante
aparência a outras criaturas vivas. Nasce daí uma
ontologia da pluralidade. Isso se resvalará de forma mais
prática em toda uma estratificação política
de seu pensamento: é pela troca da perspectiva individual
de cada cidadão sobre o mesmo objeto, deliberando uma multiplicidade
de lados e opiniões sobre um específico assunto,
que podemos abarcar um prisma mais consolidado desse objeto. O
que Mautner (e o filme) descobre é que estamos no espaço
ideal para concretizar essa relação. O Brasil é
a natureza dessa diferença. Não só porque
fomos colonizados por portugueses que traziam escravos negros
que se depararam com índios nativos ao desembarcar, mas
porque também a terra é germinada por um espírito
de abertura, de calor humano latente por necessidade de enfrentamento
do outro, que ultrapassa o velho projeto modernista de brasilidade.
Agora (leia-se os anos 60/70) o amálgama brasileiro se
funde ao mundo - “a manhã tropical se inicia; resplandente,
cadente, fagueira; num calor girassol com alegria”. Ele,
como Walt Whitman, Maikowski, Roosevelt e Rabindranath Tagore,
percebeu a potência nacional. Não à toa, Jorge
Mautner é considerado por muitos um proto-tropicalista
ou até mesmo um pai do tropicalismo.
Ante
a insurgência de tamanha figura, não demoraria muito
a chegada de um documentário que prestasse esse acerto
de contas para com a história da música, querendo
extirpar de vez uma certa obscuridade que ainda paira sobre seu
nome. Pedro Bial e Heitor D’Alincourt escolhem começar
tomando a autobiografia do filho do holocausto como base que,
como diria Bial nessa mesma coletiva, tem um paralelo parecido
com o de sua trajetória. Por isso o surpreendente começo
(não necessariamente ruim, nem tampouco poderoso) com um
depoimento da mãe de Bial, também imigrante, falando
sobre esse contexto – como um statement de autoria.
Passado o ponto de cansaço que é a declamação
de Mautner sobre seu próprio livro, entra seu círculo
de amizade mais íntimo caminhando progressivamente para
a entrada previsível de Caetano e Gil, depois seu eterno
companheiro recentemente falecido Nelson Jacobina, e enfim Amora
Mautner, sua filha.
A forma logo se enrijece. Percebe-se a necessidade quase por convenção
de ter que entrar pílulas musicais, à la “Fantástico”,
entre um depoimento e outro, para dar prosseguimento ao panorama
de sua vida pessoal e artística. A super banda que está
em todos os lugares, que também acompanhou a última
turnê de Mautner - Kassin, Pedro Sá, Domenico e Berna
- não dão mostras de muita animação
e às vezes parece quase se camuflar entre tantos câmeras
vagando pelos inúmeros trilhos e travellings que adoram
filmar velhos fetiches (a mão no violão, a câmera
descortinando algo em primeiro plano, os tempos de corte, etc).
Enfim, a lógica clara e imutável do DVD musical.
Mas não só por esses momentos remeterem a um DVD.
Jorge Mautner fica aquém do que é como artista;
e bem, se uma crítica nunca dá conta de um filme,
um filme nunca dá conta de um artista, então corrigindo:
Mautner impressiona menos aqui do que já impressionou.
Se os filmes do festival absorvessem entre eles alguma coisa por
osmose, esse alguma coisa poderia vir de Jards, de Eryk
Rocha,um filme longe de ser “a” referência no
gênero, mas, ao menos, o primeiro filme brasileiro em provavelmente
muito, muito tempo a pensar que um filme de música para
cinema deve pensar primeiro... na música e assim, aproveitar
o que o cinema tem de melhor. Jards (com boa parte da
mesma banda) é um filme com graves, impacto, woofer e subwoofer
às alturas, com a famosa “pressão” que
todo e qualquer técnico de som exige de um bom show e que
não conseguimos alcançar de jeito nenhum com os
“médios” da TV ou dos computadores. Ali, com
o filme de Eryk Rocha, a sessão de cinema saía sem
dever nada a uma audição de estúdio. Pode
até ser que aqui estejamos pedindo o que o documentário
não se propôs, mas se isso fosse por aí, seria
preciso inventar então uma subdivisão dispensável
entre documentários musicais históricos e documentários
musicais-musicais (e aí o Filho do Holocausto cairia
num limbo terrível entre o que cumpre e o que quer ser).
Se
a música não é o ápice da coisa toda,
que voltemos à política de Jorge pois entre o esperado,
às vezes despertam-se fagulhas. E Amora é um achado.
Menos por sua vergonha escolar – o pai a buscava no colégio
chique do Leblon de “sunga Gabeira” – mais pelo
embate de gerações esclarecedor. Enquanto Amora
proclama que a psicanálise salvou sua vida, pois sua infância
tão “especial” era difícil de enfrentar,
Mautner assume que fazia também psicanálise, mas
nunca para desafogar seus problemas e sim os do mundo. Queria
falar de política e filosofia e não dele. Os dele,
resolvia ele mesmo. Amora contra-ataca a atitude dizendo que isso
era jogar dinheiro fora, que a psicanálise foi feita para
esse desafogo mesmo e se não era pra isso que ele estava
lá, então por que? “Pressão pública”,
responde. Que o público ache que ele precise se desentortar,
mas da loucura aparente, esperto mesmo é ele que sabe se
virar. A geração seguinte confia aos outros problemas
que deviam enfrentar com os outros.
Setembro de 2012
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