Jogo
de Cena, de Eduardo Coutinho (Brasil, 2007) por
Cléber Eduardo
Movimento das palavras
Parece um tanto auto-referente
o início do jogo de máscaras provocado por Eduardo Coutinho em Jogo de Cena.
Vemos como primeira imagem um anúncio que procura mulheres para falar de si. Surge
um corpo, um vulto, subindo uma escada. No final dos degraus, adentramos um palco,
com a equipe do documentário lá instalada, Coutinho sentado diante das cadeiras
do teatro, completamente vazias, que se tornam o fundo dos planos nas entrevistas.
Entra a primeira mulher, a segunda, Andrea Beltrão dá continuidade ao relato de
uma delas, Fernanda Torres faz o mesmo com outra, Marilia Pera com uma terceira,
deixando mais ou menos claro os limites entre o autêntico e a representação. Temos
a impressão de estarmos diante de uma sessão de descarrego afetivo e de uma competição
entre atrizes pela melhor atuação mimética. Porém, conforme a regra do jogo se
move, o jogo se desdobra. Em alguns momentos, as falas das
atrizes e não-atrizes se confundem, porque, quando as atrizes começam a falar
para o diretor sobre o próprio processo de interpretar, os depoimentos confessionais
das não atrizes, trazem algo de suas experiências e, em outros momentos, surge
a dúvida se interpretam ou se testemunham, como as outras mulheres, ameaçando
os limites entre a verdade suposta das narrações e a simulação de verdades narradas.
Quem controla as instâncias discursivas? De quem são as vidas narradas? Quem é
a autora dessa ou daquela biografia? Entrar
no jogo de máscaras para tentar desmontar seus mecanismos e procurar localizar
a origem e a propriedade dos pedaços verbais de vida talvez seja ir contra a proposta
de Coutinho. Porque ninguém é dono ou autor de suas vidas quando começa a narrar
e compartilhar suas experiências com quem ouve. Essas narrativas deixam de ser
exclusivas e íntimas para se tornarem de todos nós. Por isso, não importa se,
ao falar de uma experiência no candomblé, Fernanda Torres fala dela ou, como fez
até então e fará depois, simula a fala de alguém. Não importa se Andrea Beltrão
sente falta do perfume de sua babá negra ou se está narrando a saudade de alguém.
Só importa o efeito cênico da linguagem, a revelação e a confusão, com fusão entre
narração original e narração cópia. Com o avançar do jogo,
porém, o jogo deixa de ser central e, graças à notável capacidade das mulheres
abrirem coração e memória para Coutinho, o material humano torna-se o eixo dramático,
com histórias de abandono, perda, traumas, rupturas familiares – mas, sobretudo,
histórias de superação de tudo isso. Se Godard disse que mulheres não fazem guerra,
porque vivem a guerra em seu interior, as mulheres aqui são sobreviventes de batalhas,
embora, em alguns casos, continuem no front resistindo às dores. O
mais importante em Jogo de Cena é essa capacidade de, no documentário mais
assumido como jogo na filmografia de Coutinho, também nos depararmos com as mais
intensas explosões de intimidade. Algumas confissões chegam a causar desconforto,
sem nenhum pudor – como a da jovem assumindo ter parado de gostar do pai, sobretudo
após ele quase morrer; ou como a da mulher que engravidou na rua, com quem tinha
acabado de conhecer e a quem nunca mais viu, sem nenhuma mágoa. Pode-se rir em
um trecho, pode-se chorar em outro, a catarse é assumida, mas conduzida pelas
mulheres, que também se desmontam diante da câmera, porque revivem as feridas
e as emprestam para as atrizes, que, em alguns instantes, também choram com a
memória alheia. E por que cargas d’água Jogo de Cena
é mais que um descarrego emocional, com disposição ou efeito de catarse – para
elas e para nós? Porque se sente cada vez mais, a cada palavra, um transbordamento
de verdade à frente da lente, com a câmera filmando apenas o rosto de quem fala,
eventualmente cortando de uma parte da fala para outra sem alterar a angulação,
às vezes mostrando as cadeiras vazias atrás delas, com raras movimentações no
enquadramento, a não ser um ou outro corpo subindo a escada ou chegando no palco.
Um filme estático. Porém, cheio de movimento – não físico,
mas da memória, das emoções, da vida mesmo. Na verdade, nenhuma dessas palavras
acima ou a soma delas dá conta de Jogo de Cena. Outubro
de 2007editoria@revistacinetica.com.br
|