história(s) do cinema brasileiro
Disaster movie realista/espiritualista
por Cleber Eduardo Apoio:
Wolf Vídeo (*)
Joelma,
23º Andar, de Clery Cunha (Brasil, 1979)
O
cinema brasileiro tem investido em roteiros construídos em torno de figuras históricas
e midiáticas, como Olga Benário, Zezé Di Camargo e Luciano, Zuzu Angel e Cazuza,
mas não dá nesse momento histórico a mesma atenção aos casos reais, antes tão
procurados como matéria-prima. Uma das primeiras matrizes do cinema no Brasil,
os casos reais, na maioria das vezes casos criminais, sumiram nos anos 90/2000.
A primeira resposta possível está no excesso de imagens dos casos mais comentados:
o que mostrar, por meio da encenação, de um caso “visualizado”? Restariam como
fonte os casos apenas descritos e repercutidos na imprensa escrita. Porque o filme
baseado em caso real pressupõe no cinema a evidência de situações não vistas antes.
Por exemplo: as imagens do ocorrido no apartamento de Alexandre Nardoni e Ana
Carolina Jatobá; a experiência de quem estava no World Trade Center em 11 de setembro.
Estamos no seio do disaster movie quando este dá as mãos para o realismo. Não
é outra coisa que irá procurar Clery Cunha em Joelma 23º Andar: o realismo
inserido no ideal de espetáculo do cinema catástrofe. Joelma tem seu lado
Inferno na Torre, mas com os índices de produção explícitos substituídos
pelo enfoque espiritualista. Essa é a primeira linha de atração contida em Joelma
23 Andar: justamente a imagem da experiência de quem estava no Joelma no momento
do incêndio, a 1 de fevereiro de 1974, com saldo de quase 200 mortos. Essa inserção
no espaço do incêndio está acima até da relação do projeto e do material com um
livro de Chico Xavier, “Somos Seis”, que conecta a raiz do projeto a uma militância
espírita. Nesse sentido, a afirmação de Andrea Ormond em Estranho
Encontro, definindo o filme como culto a personalidade de Xavier, parece exagerada,
porque, embora haja sim essa militância, o filme escapa a ela, assumindo-se como
um disaster movie semi-sentimental. Não é de espiritualismo
que Joelma se mantém hoje, nem de seu misticismo tratado como parte de
gênero terror/suspense, mas de sua tentativa de mostrar a experiência dos corpos
no incêndio. Corpos caem nas imagens de arquivo; corpos são mostrados com suas
queimaduras (maquiagem e reais); corpos correm de lado para outro. Na dramaturgia
audiovisual, os corpos também são questões, se não pelos contatos físicos, ao
menos como pólos de atração e distração. Um casal está de namoro marcado quando
o incêndio ameaça interromper a consumação do encontro. Já a protagonista, interpretada
por uma Beth Goulart adolescente, não dá a mínima para as demandas dos corpos.
É
muito específica a descoberta de Joelma 23 Andar, nas suas articulações
em 2008. A organização de cenas de cotidiano, filmadas em geral com planos frontais
e “coladas” umas às outras meio de qualquer jeito, nos mostra um cinema no aprendizado
do narrativo, com empenho em transitar da mera soma de planos para um encadeamento
entre as partes, mas sem domínio dessa dinâmica – como nos insinuam os cortes
aparentemente empregados para solucionar uma ausência na filmagem, um corte de
plano comprometido por algum problema, um planejamento dos enquadramentos sem
levar em conta a futura busca de uma continuidade de ação no tempo e no espaço.
O narrativo gagueja. Joelma
tanto parece desejar essa narrativa da gramática, com uma distância significativa
entre intenção e prática, quanto se abre para dissonâncias no uso dos códigos.
O desenho do som leva em conta determinadas construções dramáticas de alguns filmes
de suspense, dos thrillers em geral, mas as utiliza sem dominar ou seguir
o abecedário dessa utilização. Tomam-se emprestados determinados expedientes usados
em outro contexto por outros filmes, como o tema musical de Psicose, de
Alfred Hitchcock, mas não se vê na organização audiovisual nenhum pensamento sobre
a operação. Estamos em boa parte na dinâmica da aleatoriedade e do experimentalismo
em busca do espetáculo. O aparente vale tudo, que incorpora ainda um institucional
documental sobre espiritismo e Chico Xavier, tem seu “conceito”. Há um diálogo
muitas vezes inventivo e outras vezes preciso entre as imagens da encenação e
as imagens de arquivo, com umas chamando as outras, umas fundindo-se com as outras.
Em nome do espiritismo, essas fusões de ficção e arquivo, com aparente efeito
realista, são deixadas de lado em alguns momentos, nos quais as imagens de seres
mortos ganham uma moldura mais artificial. De modo geral,
Joelma é mais forte quando persegue o espetáculo com intensidade, nas cenas
de incêndio, e caquético na mais simples solução cênica. Clery Cunha pode ser
considerado, nessa experiência específica, um diretor em busca do cinemático,
sobretudo nos jogos de luz e de cor, na delimitação de fronteira entre sonho e
realidade, entre ficção e arquivo, mas é sofrível na elaboração dos atores e da
câmera no set. Pode-se ver essas características, em 2008, como procedimentos
pré-clássicos somados a artifícios pós-modernos, que resulta em uma constante
convivência entre o naif e o racional. Não deixamos de abandonar, nesse
sentido, a experiência do insólito; um insólito com força e inventividade. Agosto
de 2008
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