ensaios
Transbordando gêneros
Jiboia, de Rafael Lessa
por Fábio Andrade
Há muito a crítica de cinema que
apelava às noções do “bem feito”
ou do “mal feito” foi justamente escorneada como demodé.
Ela era símbolo da legitimação apriorística
do cinema da Retomada, em que os méritos de um filme eram
julgados por pressupostos técnicos que sagravam a maneira
de dizer acima das palavras ditas. A reação, por
outro lado, somente girava a moeda, sem perceber que, mais do
que oscilar entre forma e matéria, era justamente a separação
do inseparável que atravessava os ossos da canelada: queremos
filmes mau feitos. A técnica – e, junto com ela,
a tradução insuficiente da techné
– era jogada para escanteio, como parte maldita de um cálculo
mal feito.
Porém,
é miopia não perceber que o “bem feito”
não é somente uma qualificação técnica,
e que essa técnica também não pode ser excluída
da equação: não há texto que sustente
sua força através dos percalços da má
escrita – algo que não é exatamente questão
de estilo ou de gramática, mas de se dizer o que se quer
dizer da forma que a compreensão seja próxima de
sua vontade de origem (seja ela de bom gosto, mau gosto, ou sem
gosto nenhum). Jiboia impressiona, logo de cara, por
reivindicar esse termo tão esquecido: é um filme
extremamente bem feito, e isso diz menos respeito à grua
que dá as caras em determinado momento, à “qualidade”
que redunda em aspas de ironia, e mais à maneira como os
elementos do filme – as pequenas estruturas de matéria
– são cuidadosamente distribuídos na duração
da projeção (o tal poder do cinema de gênero)
para ressaltar as conexões que já estão no
mundo (a crônica de costumes).
Filmes
sustentados por tamanho cuidado com sua arquitetura interna podem
se equilibrar facilmente em um único pilar, sem que a síntese
se torne metonímia. A partir de uma cena, um plano, um
quadro, um rosto de ator, tudo pode ser dito e já está
dito, pois não há espaços para gratuidades
(a não ser que a gratuidade seja essencial – a gratuidade
nada gratuita). Em Jiboia, tudo se resume a um fio de
uma navalha. É ela que cortará os cabelos de Gracekelly
(Gabriella Vergani) e realizará seu desejo de ficar igualzinha
à atriz da revista (“só os peito que não”),
e que voltará para cumprir a parte perversa do sonho inacabado,
rasgando o torso da menina como uma tentativa desesperada de reter
uma inocência que ajudou a usurpar. É ela que abrirá
as costas do médico (Pedro Aguinaga), pelo puro acaso de
ele estar de costas (porque o desejo é de cortar outra
coisa), preservando que a “princesa” da Rua Augusta
seja (voluntariamente) violada, assim como é ela que Aurora
(Gilda Nomacce) correrá sobre a calcinha de sua jovem e
virginal amante, tentando mantê-la sob seu controle.
Imantada
pelas convenções do(s) gênero(s), em Jiboia,
a navalha – ferramenta que realiza sonhos, mas que leva
como pagamento sempre um naco de pureza – é a própria
câmera de cinema, que acompanha seus movimentos em tilt
down sobre o corpo de Gracekelly, e corta suas mechas de
cabelo mal pintado. É ela que ditará a trajetória
do filme, de ferramenta de graça (em amplo sentido: graça
da Virgindade; graça dos agraciados pela beleza; graça
como humor) à ferramenta do horror, impondo ao filme mais
do que uma mudança de tom: uma mudança de gênero.
Estamos – por vários motivos, inclusive os mais óbvios
– em terreno próximo do explorado por Pedro Almodóvar
em A Pele que Habito, com a diferença de que a
mudança de gêneros aqui não provoca choques;
ao contrário, o terror e o humor são fases diferentes
de uma mesma matéria em movimento, como o locutor de rádio
que é capaz de, da mesma forma que anuncia “a nossa
música”, fazer troça de uma menina morta em
um ritual de magia negra sem, com isso, tirar dele seu peso ontológico.
A
habilidade com que Rafael Lessa consegue fazer esse trânsito
– trânsito, e não transição –
impressiona como domínio do cinema de gênero(s),
mas Jiboia é também uma crônica social.
Pois, assim como há a navalha, há também
o programa de rádio, as revistas de salão, o silicone
e o corte de cabelo das atrizes de novela, o laquê que vira
lança-chamas, a “coceirinha” que chantageia
por mundos e fundos – partes integrantes mas nem sempre
flagrantes desse encontro entre a graça e o horror. O desejo
de quem quer ficar “seiuda” só pode ser cumprido
pela mutilação da matéria, dilacerada por
um rasgo - um sorriso forçado? - de ironia e horror. Como
apresentação de um contraplano quase nunca visto
(a noite de um salão de beleza) para um plano midiático
excessivamente propagandeado, Jiboia se aproxima de Cidade
dos Sonhos, de David Lynch, com a diferença de que,
no filme de Lynch, tudo estava atrelado a um ponto de vista específico
de uma personagem. Em Jiboia, não há outro
ponto de vista possível que não o da própria
navalha. A Gracekelly, o locutor de rádio reserva, de uma
forma ou de outra, a inevitabilidade de ser, mesmo que por breves
segundos, o que ela estava condenada a querer ser: uma celebridade.
O
melhor cinema de gênero se destaca não pela capacidade
de emular este ou aquele estilo, mas antes pelo poder de imantar
cada pequena estrutura de matéria – a rigor, o mundo
- que, no cinema, se traduz em objetos, atores, espaços
– de forma que ela seja atraída por seus pares opostos,
se aproximando e se transformando – a elas mesmas e ao mundo
no qual elas estão inseridas (a cena) – a cada nova
aproximação. Por outro lado, a melhor crônica
de costumes é aquela que, mais do que criar conexões
entre esses mesmos elementos, percebe as ligações
que já existem no mundo, e que, por alguma força
ou motivo, ainda não tinham sido trazidas à luz.
Desse encontro, por si dependente de diferentes encontros, nasce
Jiboia.
Maio de 2012
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