ensaios
Ao alcance das mãos
As transições do cinema de Jia Zhang-ke
por Pedro Henrique Ferreira
“A realidade do que vemos é o que podemos manusear”
George H. Mead
O
título original de Em Busca da Vida (Sanxia
haoren) traduz-se por “a boa gente das Três Gargantas”.
Remete ao tema das paisagens urbanas dos xiaocheng e
à população de trabalhadores, migrantes e
bandidos que habitam tais condados, tipo de retrato recorrente
nos filmes de Jia Zhang-ke que o tornou um dos principais expoentes
desta geração “realista” no cinema chinês.
Por outro lado, como bem notou o acadêmico Zhang Xudong,
a tradução norte-americana por “still
life” se baseia num trecho de uma reflexão do
próprio diretor: “A natureza-morta representa uma
realidade negligenciada por nós. Embora preserve as marcas
profundas do tempo, ela permanece em silêncio e, desse modo,
guarda o segredo da vida.”
Por trás desta interpretação arqueológica
um tanto idealizada, se esconde um fascínio que demonstra
uma filiação do diretor chinês ao gênero
pictórico. Em uma interpretação das pinturas
de maçãs executadas por Cezanne, o crítico
Meyer Shapiro escreve que “a natureza-morta consiste de
objetos que, sejam artificiais ou naturais, estão subordinados
ao homem como elementos de uso, manipulação e prazer;
são objetos menores que nós mesmos, ao alcance da
mão, e devem sua presença e lugar à ação
humana, a um propósito.” A expressão artística
está na tonalidade das cores, no desenho das linhas, na
disposição das maçãs e vasos sobre
uma mesa e na intensidade sentimental que cada um destes aspectos
representa. Em síntese, na forma plástica pela qual
objetos desapaixonados, retirados da natureza (e por isto, mortos)
são realocados no espaço emoldurado. Não
é este o interesse paisagístico na megalomania pasteurizada
do parque de atrações de O Mundo? Ou no
rio artificial que alagou a cidade no Em Busca da Vida?
Não está em jogo nesta filiação uma
espécie de discurso sobre o presente?
Diferentemente
da pintura, a natureza que o cinema assassina (domina, reconstrói)
não é um objeto estagnado, mas um movimento. Jia
recorre a eles para seu mise én place. Não
se trata de imobilizá-los e retirá-los do fluxo
real. A verve realista do diretor jamais permitiria esta forma
de abstração. Trata-se, antes, da sublimação
deste fluxo através da eleição e reordenação
dos movimentos. Abstrai da realidade um conjunto dos movimentos
(p.e. homens derrubando uma parede) e os (re)põe em cena
de modo que possam dar sentido e expressão a uma realidade,
entendida como a sociedade presente. O procedimento é uma
destilação até o status de símbolo,
em algo semelhante às jornadas de Angelopoulos pela Grécia
moderna – sem a nostalgia, sem os tempos mortos, sem o surrealismo.
Explicar a realidade (sinônimo de presente) por um controle
absurdo da encenação e dos movimentos que elegeu
como símbolos, fazendo um pedido para que o espectador
mergulhe neles.
É sabido que o pano-de-fundo de Jia Zhang-ke
faz sempre remissão a uma China contemporânea desajustada,
cujos desdobramentos da abertura ocorreram numa velocidade tremenda,
indo de um regime socialista ao maior desenvolvimento econômico
e industrial da BRIC nos últimos anos. O entendimento é
teórico. A leitura, distanciada, sócio-política,
composta na profundidade de imagens exuberantes, na onipresença
dos sons da cidade, nas lentas panorâmicas que fazem varredura
no espaço, e em outros recursos que nada têm de realmente
inovadores. Eles constroem uma ambiência, remetendo sempre
à mesma noção do que é o país
em seu atual estágio de modernidade. Por outro lado, há
o drama humano, os namoros, términos, trabalhos, diversões
e brigas das camadas que vivem e trabalham nestes xiaochengs
– o cotidiano de mulheres apaixonadas, jovens vagabundos
ou velhos nostálgicos. São verdadeiros painéis,
muito ao estilo de Ozu, Edward Yang, ou até Canijo, que
servem como guia da narrativa, o motor que carrega o espectador
de um canto a outro neste espaço amorfo e em transformação
que é a China contemporânea.
O jogo criativo da cena é explorar as mais diversas formas de articulação entre a ficção dos pequenos dramas e esta realidade sociológica-simbólica. Um jogo acentuado pela forma como o digital elimina alguns dos meio tons de luz e planifica o todo. Isto se repete à exaustão, quase como que uma regra geral das composições. Está na articulação entre a camisa pendurada em primeiro plano e um monumento antigo que se torna um foguete ao fundo. Por vezes, similaridade ou contiguidade. Por vezes, indiferença ou distância. Por vezes, uma relação de nostalgia, e por outras, de encanto, atingindo ora um tom de intimidade, ora de melancolia, ora de melodrama, e até de pastiche. Cria-se um esquema em que as figuras são por vezes resultados de seu contexto, e em outras agentes totalmente livres dele.
Falou-se muito da transição de Jia
Zhang-ke da película ao cinema digital, pois os resultados
são visíveis. Mas é de se supor uma outra
passagem talvez mais decisiva no interior desta trama plástica
que mencionei anteriormente. Os retratos sensíveis de grupos
ou comunidades sonhando sob condições precárias
nos belíssimos O Mundo e Plataforma vertem
para verdadeiras investigações da paisagem urbana
a partir de Em Busca da Vida.Não
é à toa que seus filmes posteriores são documentários
com algum grau de encenação, quando antes, ao contrário,
tudo se movia como uma ficção com algum grau de
interesse pelo mundo. É que a potencia dramática
destas obras se torna menos vital do que o seu caráter
de diagnóstico. As investigações da relação
ambígua entre o primeiro plano e fundo se tornam mais óbvias,
tanto quanto o olhar minucioso sobre a superfície de seus
travellings. Basta notar como, para passar de um personagem
central a outro, Jia Zhang-ke inventa um OVNI viajando ao fundo
e põe os dois personagens estáticos, olhando. O
flerte neorrealista desaparece por completo. Os mesmos recursos
que outrora criavam um painel vívido de crises, sonhos
e paixões, agora geram um discurso rígido, exegético.
É nesta transição, tão pequena quanto
um piscar de olhos, que um dos diretores mais promissores do século
se tornou um dos mais previsíveis.
Agosto de 2012
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