Jean Charles, de Henrique Goldman (Brasil, 2009)
por Eduardo Valente

Além do verossímil, o verdadeiro

Não é preciso passar do título para saber que Jean Charles parte de uma relação vampirizante da ficção com a realidade. Só que a feliz surpresa deste filme, que tenta recriar alguns momentos do último ano de vida do imigrante brasileiro em Londres que acabou tristemente famoso ao ser assassinado por engano da polícia inglesa, é que esta relação ultrapassa em muito o que se poderia esperar de um trabalho cuja dinâmica de produção marcada pelo “calor da hora” nos fazia temer por uma exploração sensacionalista que buscasse, tanto pelo viés melodramático quanto pelo denuncista, construir a posteriori um herói para satisfazer um certo nacionalismo.

Mas desde a primeira sequência do filme, em que a prima do personagem-título luta contra a burocracia e a segurança para conseguir entrar na Inglaterra (onde, logo veremos, vai tentar trabalhar ilegalmente), Henrique Goldman já deixa claro que o seu Jean Charles não terá nada de idealizado, apresentando-o de saída como alguém que vive “fora da lei” sem nenhuma vergonha nem vitimização usada para justificar sua condição marginal em mais de um sentido. O Jean Charles que surge em cena não é nunca um receptor passivo de uma condição prévia, mas sim o construtor de seu próprio destino (pelo menos até o incidente fatal, o que talvez empreste uma certa ironia a este evento que dissipa qualquer possibilidade do discurso do filme resultar num denuncismo mais fácil). Sempre em movimento, ambicioso, dono de suas opções em busca de um objetivo com tintas até hedonistas, trata-se de um personagem que Goldman permite resultar inclusive bastante desagradável em determinadas cenas.

De fato, o Jean Charles pensado pelo diretor funciona perfeitamente conforme construído por Selton Mello, usando sua persona fílmica debochada e um tanto performática justamente para construir a partir dela um personagem marcado pela enorme capacidade de atuar – em sentidos usados pelo filme tanto em registro cômico (nas enganações que o personagem constrói) como dramático (na incapacidade de deixar de lado esta capa de atuação para assumir uma perda de controle ou qualquer traço de melancolia). Uma das decisões mais curiosas de Goldman é a de colocar um ator tão reconhecível por seu estilo quanto Selton para contracenar com uma série de figuras reais, autênticos imigrantes brasileiros (alguns dos quais conheceram o verdadeiro Jean Charles). A maneira como o filme solta seu Selton/Jean Charles pelas ruas de Londres ou como o coloca de frente com não-atores em cenas de diálogos lembra muitos momentos do Pereio posto em cena por Orlando Senna e Jorge Bodansky em Iracema: entre a performance e o real constrói-se um registro outro, inesperado, em que cada lado tão oposto do espectro da presença em cena acaba conseguindo tornar o outro mais pungente.

Neste sentido, até alguns possíveis “defeitos” do filme acabam funcionando a seu favor, pois mesmo uma certa indigência técnica/estética (facilmente perceptível em detalhes como o uso bem pouco naturalista da dublagem ou do som ambiente) tanto empresta ao filme uma urgência e um charme meio ultrapassados (que nos remetem a um certo cinema britânico dos anos 70 como matriz de realismo, mais do que a gramática corrente pós-dardenniana), como impedem que qualquer sensacionalismo se instaure.

A verdade é que surge deste encontro de registros de presença cênica (mediados por admiráveis atuações “metódicas” de Vanessa Giácomo e Luiz Miranda), aquele que talvez seja o grande interesse de Jean Charles: uma sensação de enorme vida interna em grande parte de suas sequências. Esta sensação que o filme consegue atingir certamente é, muito mais do que qualquer construção estilística, o que ele possui de mais inegavelmente autoral. Afinal, como mais de uma matéria jornalística já fez questão de trazer à tona, Goldman divide com seu personagem a condição de ter vivido ilegalmente no país onde a maior parte do filme se passa. Só que, muito mais do que puro discurso midiático, esta sobreposição entre autor e obra é certamente o que permite que a construção das cenas possua essa capacidade de superar uma simples verossimilhança mais banal e atinja uma sensação de verdade cênica mais profunda. Independente de seu conteúdo sem dúvida duro, o fato é que há um verdadeiro prazer que emana de quase tudo que ele encena em Londres, algo que certamente só pode se concretizar por fazer tanto sentido para quem as constrói – e, não por acaso, quando o filme vem ao Brasil perto do fim é onde encontra seu pior momento, forçado e sem vida.

Este inegável tesão de encenar a vida de um imigrante acaba emprestando ao filme uma estrutura em que as cenas parecem independentes umas das outras (algo que também acontecia em Iracema, diga-se), de maneira que a relação do espectador com o que assiste não se encontra quase nunca atrelada a uma noção de entrecho dramático. E faz todo sentido que o filme consiga desvencilhar-se do drama (aqui entendido como andamento ficccional) de seu personagem principal – e não apenas porque o final de sua história seja previamente mais do que conhecido. O filme que Goldman quer fazer é um que se estrutura totalmente a partir de uma lógica metonímica - “Jean Charles, c’est moi”, parece nos dizer a cada momento. Goldman quer ressaltar muito mais a banalidade da condição de Jean Charles do que buscar se ancorar em qualquer fato que o torne um personagem especialmente diferenciado. Ele entende perfeitamente que a força de seu filme vem justamente da noção de que tanto aquela vida ordinária, como seu final absolutamente extraordinário, poderiam ser o de qualquer um naquela situação – e que se há alguma pungência política real a ser afirmada a partir desta história, ela reside justamente neste fato.

Julho de 2009

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