in loco - cobertura dos festivais
Jardim Ângela, de Evaldo Mocarzel (Brasil,
2006) por Cléber Eduardo
O olhar de dentro e o de
fora A primeira imagem
de Jardim Ângela é a de uma televisão a exibir algo, indefinível
em um primeiro momento. Uma panorâmica de 180 graus, ainda no mesmo plano inicial,
nos mostra um grupo de adolescentes. Segue-se um close-up em um deles.
Nessas duas tomadas, da tevê para os adolescentes e deles para um único em especial,
vemos uma síntese do filme. A câmera vai do dispositivo para o geral (do vídeo
para os alunos), o corte vai do geral para o específico (dos alunos para um rapaz),
e, na sequência, vemos o específico (o rapaz em close), por meio do dispositivo
(a oficina de vídeo), tornar-se sintoma da condição de vida na periferia. Saberemos
adiante que a imagem na TV é de um vídeo, que o vídeo é fruto de uma oficina na
periferia, que essa oficina desnudará questões maiores (sobretudo sobre a visão
de dentro da periferia, de seus jovens) em relação ao tráfico, ao alcoolismo,
à violência – ou seja, em relação ao sentido amplo de periferia (geográfica e
social). A oficina torna-se, assim, um atenuante, uma ferramenta para mudanças.
Nesse sentido, ao aliar-se
a uma visão-ONG da problemática social, Jardim Ângela exala contemporaneidade.
Longe de problematizar sua própria postura, celebra-a como a saída viável, apoiado
em um “burguescentrismo” descentralizador, que toma para si a responsabilidade
de, nas palavras do diretor, incentivar a “formação do olhar” da periferia (quando
seria o aprendizado da técnica e não a formação do olhar), como se a periferia,
na soma de seus indivíduos, não tivesse seus olhares próprios. Essa proposta de
saída pela diferenciação do indivíduo em relação a seu ambiente, como também vemos
em Uma Onda no Ar, de Helvécio Ratton; Cidade de Deus, de Fernando
Meirelles; Antonia, de Tata Amaral; e Os 12 Trabalhos, de Ricardo
Elias, é uma ótica bastante atual em nossa sociedade. Temos aí uma visão propositiva,
dentro das possibilidades apresentadas, não uma visão de conflito, de confronto,
como nos habituamos a ver nos filmes do momento histórico anterior – o Cinema
Novo, ou exemplares do Cinema Marginal. Como diagnóstico
de um segmento de sociedade, que recusa a celebração de singularidades sem contexto
(tão em voga nos documentários brasileiros contemporâneos), Jardim Ângela
não tem as conexões necessárias para tal. Ao exibir seu esforço por revelar e
entender o lugar onde está, ao colocar-se como um aparelhamento do outro, torna-se
mais sintoma que realmente um diagnóstico. Sem fincar pé no documentário de “mostração”,
Jardim Ângela também não chega à demonstração, como era usual nos anos
60/70. Mocarzel faz o papel de descobridor de um mundo, ao solicitar explicações
sobre gírias e sobre armas. Se limita ao universo dos alunos da oficina e, não
sem riscos, toma a parte pelo todo e o todo pela parte, sem nos oferecer especificidades
das existências ali expostas aos fragmentos. Nunca saímos de Jardim Ângela,
o filme comandado por Mocarzel, para sermos instalados em Jardim Ângela, o bairro,
porque a câmera não sai, a não ser em rápidos planos de passagem com imagens de
ruas, de seu set de gravação. Temos
ao longo do esforço por se construir uma narrativa a partir do making of
da oficina da Kinoforum, da qual o diretor era um dos consultores no momento da
captação, um ponto de tensão entre as visões de dentro e de fora – ou de centro
e de periferia. Ao eleger como protagonista o jovem Washington, o aluno mostrado
em close up no início, Mocarzel opta por valorizar a ímagem-estigma, justamente
aquela que, como vemos nas discussões dos alunos, os vídeos da oficina tentam
exorcizar. Embora eles reivindiquem uma imagem positiva de seu espaço social,
as frases e imagens de efeito de Washington seguem no contrafluxo desse projeto.
Mocarzel claramente fica fascinado com seu personagem, que faz sua performance
verbal e sonora quando narra experiências violentas, aponta uma arma de brinquedo
contra a câmera e o espectador (como em O Grande Assalto de Trem, de Edwin
Porter, nos primeiros anos do cinema), enumera frases de efeito e ostenta um orgulho
de ser um sobrevivente em um ambiente de machos prontos para tudo.
Impõe-se um natural olhar de fora sobre o de dentro, o do diretor/montador
sobre os entrevistados/personagens. O olhar de dentro está no vídeo
de Washington e de seus colaboradores, cujas imagens são parcialmente usadas
pelo filme já no desfecho. O olhar do filme é o de fora, olhando
para esse de dentro, mas sem mimetizá-lo e, eventualmente, contrariando-o
em sua dinâmica. Se é especialmente interessante a dialética
discussão entre Wahsington e duas das moças de sua equipe, quando
ele usa a pobreza como justificativa para o envolvimento no crime e elas reagem
com o cultivo do livre arbítrio, o filme não reproduz essa mesma
dialética ao optar por Washington. Talvez essa opção seja
necessária para que, no começo (com imagens já do fim da
oficina) e ao final (que retoma o começo), o filme identifique a transformação
ocorrida, justamente a partir do choque de visões. Essa dinâmica
de "antes" e "depois", cujo ponto de fronteira é a
imagem de uma exibição de vídeos na rua, que nos coloca no
início da oficina, é eficiente para a proposta do filme, que, sem
ser exatamente um institucional dos bons frutos colhidos pelo ensinamento da periferia
pelo centro a como se filmar, no fundo visa elogiar o próprio processo
no qual se originou.
Novembro de 2006
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