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A mãe de Isabella e a Poeta do Fantástico
por Cléber Eduardo

Embora a primeira versão das linhas abaixo tenham sido escritas no dia 11 de maio, mesmo dia da entrevista exibida no Fantástico sobre a qual esse artigo é centrado, o texto sofreu algumas modificações desde então, chegou a ser aposentado, retornou à existência. Por que? Porque a crescente banalização dos procedimentos audiovisuais, a crescente naturalização de determinadas estratégias, como se esses procedimentos não operassem visões políticas para a imagem e imagens políticas em suas visões, solicita uma reação com reflexão, sem o ímpeto pouco distanciado das reações imediatas, mas com a busca de uma reflexão pulsante, com atitude, sem posar de ciência ou revelação.

As três câmeras, os cortes e a regência de Poeta



Ana Carolina Oliveira, mãe de Isabella, no Fantástico. Deixemos de lado a parte que fala alto aos sentimentos coletivos, amplificados pelo fato de a entrevista ter sido exibida na noite do dia das mães, e esqueçamos ainda a parte vinculada ao entrecho investigativo da situação. Interessam somente determinados momentos da narrativa jornalística, operada pela edição das imagens captadas com três câmeras (plano, contraplano e plano lateral), pela presença cênica da apresentadora Patrícia Poeta e pelos flashbacks proporcionados pelas palavras de Ana Oliveira. 

Em dado momento de seu desabafo confessional, Ana Oliveira desaba em lágrimas. Uma voz do extracampo, com tom de ordem: “Respira fundo”. São dois minutos e 30 segundos de entrevista. Pedido para respirar fundo é um possível gesto de solidariedade. Uma forma de dar um abraço, de estender uma mão. No entanto, quando essa solidariedade se dá diante de três câmeras e da obrigação de colher material para o Fantástico, a solidariedade soa como precaução. Evita o risco da desistência da entrevistada.

Poeta emenda uma pergunta ao fim da resposta engasgada de Ana Oliveira, mas, imediatamente após a prova de sua produtividade como jornalista, pergunta à entrevistada se elas podem continuar. São dois minutos e 45 segundos de entrevista. Na verdade, Poeta, antes da pergunta, já continuava. A pergunta (“a gente pode continuar?”), claramente, é uma auto-defesa. Poeta parece menos preocupada com a entrevista e mais com sua atitude diante da mãe em luto. Ana Oliveira, que está no Fantástico para falar, mas também para chorar seu luto individual na esfera da coletividade, concorda. Continuam.

Uma “decupagem” minuciosa

O primeiro plano mostrado tem como alvo a entrevistadora. A entrevistada está quase de costas, quase de perfil. O plano seguinte é do rosto de Ana Oliveira, destacando o nome Isabella em sua camiseta. Os planos se intercalam, mais aberto e direcionado para a Poeta quando ela pergunta, mais fechado no rosto/camiseta de Ana Oliveira nas respostas. Basta a mãe ficar de voz engasgada, embargada, ameaçando falhar que, sem nenhuma sutileza, somos submetidos a um zoom no rosto dela. Um minuto e 17 segundos de narrativa.

O nome de Isabella não mais importa. Isabella não importa mais, nem seu pai, nem sua madrasta, nem o promotor. Importa a lágrima, a perda do controle de uma mãe, que, até então, chegou a ser acusada de frieza diante da perda da filha. Motivo: não chorava diante das câmeras, não queria falar dos seus sentimentos. Como essa mãe, deve pensar o senso comum, não divide sua dor? A TV passa a ser o instrumento, portanto, de luto de uma comunidade. Começa-se a perceber, na imagem, que a entrevista é a chance, no Dia das Mães e no programa das situações fantásticas, da mãe mais famosa do Brasil derramar suas lágrimas. Era a oportunidade para ela ser uma mãe comum em circunstância incomum.

No plano seguinte, de Poeta, o enquadramento está mais fechado em seu rosto, de modo a mostrar a reação da jornalista à reação de sua entrevistada. Com dois minutos e 53 segundos, depois da câmera mais fechada no rosto de Ana Oliveira abrir o plano e descer para enquadrar uma girafinha de brinquedo, surge um terceiro ângulo, lateral, que também desce do rosto para o “animalzinho”. A cena ganha um objeto cenográfico, que, pela importância afetiva para a entrevistada, entra em cena como dado dramático.

Essa mesma câmera lateral, que enquadra as duas de perfil, procura momentos de mise-en-scène. Com três minutos e oito segundos, vemos a imagem de Poeta refletida no espelho do ambiente, mas com seu corpo e rosto fora do quadro ainda, criando um efeito de plano e contraplano. O plano é da entrevistada, pois começa fechado nela, em suas mãos, e vai subindo até seu rosto, quando, pelo espelho, vemos o rosto de Poeta. O rosto no espelho, o corpo fora do quadro. Poeta ali é a imagem da imagem. É imagem captada pela câmera e imagem captada pela câmera do reflexo do espelho. Não é presença, mas somente imagem, ou uma presença-imagem, mais que imagem-presença.

Em outro momento, ainda mais estilizado, com 4min20seg, a câmera está no perfil da mãe, com a imagem levemente desfocada do perfil da entrevistadora no espelho, criando uma composição de plano e contra plano em um mesmo plano. O espelho passa a se tornar, ao contrário da camiseta da mãe e da girafinha da filha (instrumentos dramáticos), um instrumento estético. Como filmar o melodrama com alguma elaboração? Com maneirismo. É preciso já filmar a imagem, o reflexo, não a presença física, sem intermediários. Estamos em momentos de mediações variadas. O espetáculo da perda vai sendo construído nos mínimos detalhes.

Com 4:33 min, Poeta diz que, nos últimos anos, não tinha visto e ouvido um caso tão midiático quanto o caso Isabella. A menina morta, em suas palavras, torna-se um caso. Esqueçam gestos cênicos de solidariedade. É um caso. Importa o caso, não as vidas, não a morte. Poeta naquele momento precisa fazer o papel de quem está dentro de um caso.  Precisa ser íntima sem perder a distância de quem precisa manter o caso.

Ana Oliveira chora de novo, agora de forma mais sutil. Um corte nos dá a ver o ângulo da câmera lateral, que, por sua vez, nos mostra a mão de Poeta sendo extendida até o joelho da entrevistada, em mais uma espécie de “Respira Fundo”. Nenhuma palavra naquele momento, mas as mãos falavam sem precisarem  de som

A memória comunitária pelo flashback

“Vamos falar um pouquinho do sábado?”. Imagens da entrada do edifício London, com legenda a informar que é uma imagem do dia 29 de março, o dia da morte de Isabela, mostrando a busca pela imagem verídica, aquela imagem que, apesar de mostrar a frente de um prédio e uma rua vazia, traz algo de verdadeiro. Corte para carro de polícia. Corte para zoom até duas janelas com as luzes acesas. São essas as imagens da memória midiática da noite de sábado em 29 de março de 2008.

Quando a entrevistada fala da entrevista dos reús no mesmo Fantástico, a Globo remete a trechos da entrevista de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, em uma espécie de perícia da imagem, por meio da qual a imagem passa a carregar evidências de suspeita. Em outras palavras, se a intenção do casal era livrar a cara com a tentativa de convencer o país sobre sua inocência em horário nobre de domingo, eles acabaram colocando a corda no pescoço, segundo se constata ao se ouvir as palavras de Ana Carolina Oliveira no mesmo programa. Ela considera a entrevista uma farsa, um teatro, uma encenação da inocência perdida.

Uma imagem tudo revela, segundo esse raciocínio, portanto, se é possível mentir na imagem, a imagem não mente para nós. Lançada a suspeita, a Globo deu a prova da suspeita (a outra entrevista), em parte assinando embaixo das palavras de Ana Oliveira, em parte abrindo mão de tomar partido para deixar a imagem falar por si. Nenhuma perícia, nenhuma prova circunstancial, nenhuma testemunha, nenhum documento pode com uma imagem, seja a imagem da verdade de uma mãe, seja a imagem da mentira dos suspeitos, desde que, antes dessas imagens, estejamos preparados (pré parados) e formatados por pressupostos para lidar com elas.

* * *

A essa altura do caso, mais de dois meses após a morte de Isabella, a temperatura baixou. E nos ensina o senso de imediatismo que, com a diminuição da temperatura, não há mais motivo para pensar. Menos motivos ainda para retornar a um “caso audiovisual”, um fenômeno midiático-cultural, talvez uma das maiores audiências dos últimos anos, se não diretamente, certamente por intermédio de terceiros. Se retornamos, é porque, embora valorizemos as reações no calor da hora quando elas são solicitadas, por outro lado, quando a solicitação é de decantação da experiência, privilegiamos a reflexão à reação. Uma reflexão é também uma reação, mas, nesse caso, não somente gerada pela experiência, mas também por um pensamento construído por etapas, não por impulsos. 

Junho de 2008

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