pariscópio - especial Berlim/Paris
Infância do cinema
por André Brasil

“Em nosso jardim havia um pavilhão abandonado e carcomido. Gostava dele por causa de suas janelas coloridas. Quando, em seu interior, passava a mão de um vidro a outro, ia me transformando. Tingia-me de acordo com a paisagem na janela...” (Walter Benjamin)

Definitivamente, o cinema cresce. Expande. Suas imagens transbordam a sala escura e povoam os espaços dos museus e galerias. É o que sugerem duas exposições recentes: Le Mouvement des Images, no Centre Georges Pompidou, em Paris, e Beyond Cinema: The Art of Projection, no Museum fur Gegenwart, em Berlim.

A primeira, sob a curadoria de Philippe-Alain Michaud, reordena um conjunto de obras do Museu Nacional de Arte Moderna à luz de categorias importadas do cinema: Defilement, Projection, Récit, Montage. A segunda, concebida por Stan Douglas, Christopher Eamon, Joachim Jager e Gabriele Knapstein, pensa essa expansão do filme a partir de recortes menos didáticos: Phantasmagoria, Persona, Repertory Cinema, Body Double, The Liminal, The Optic.

Esse processo de expansão do filme para além da sala escura, sabemos, não é recente. Hoje, ele ganha novas nuances, em grande medida provocadas pelas possibilidades abertas pelas tecnologias eletrônicas e digitais. Ganha, também, novos nomes: l’autre cinema, future cinema, pós-cinema, beyond cinema... conceitos que, de uma forma ou de outra, apontam para uma superação do cinema provocada por sua própria expansão.

Contudo, algumas obras podem nos indicar um caminho inverso: aquele que nos levaria não à uma superação, mas à infância do cinema. Seguir esse caminho nos permitiria esboçar uma política da linguagem cinematográfica, atenta a sua capacidade de se reinventar constantemente. Aqui, a infância é aquele domínio em que o cinema reencontra as outras formas artísticas, em que sua linguagem é pura potência: como um balbucio, um esboço. Como um brinquedo desmontado. 

Não se trata, portanto, de uma noção cronológica. A infância, nesse caso, não é o que, pouco a pouco, se perde no tempo (aquilo de que se alimenta a nostalgia). Também não se trata de uma essência do cinema, perdida, que deve, a todo custo, ser recuperada, preservada.

A infância é o que resta ao fundo de toda imagem, o vazio que habita a imagem. Aquilo que, em meio a tantos clichês, nos possibilita experienciar o mundo, de novo e novamente, com os olhos ingênuos (ou nem tanto) da criança. Ela é, nesse sentido, um mistério: feita a imagem, algo permanece por ser feito; vista a imagem, algo permanece por ser visto. Se a infância é uma origem, ela está no que viria: “Aquilo que tem na infância a sua pátria originária, rumo à infância e através da infância, deve manter-se em viagem” (Agamben).

Resíduos do tempo

Nam June Paik tem um sorriso maroto. À sua revelia, sua obra se institucionalizou, mas esse riso, entre ingênuo e malandro, se mantém. Ver Zen for Film (1964 - imagem no alto do texto), instalação exposta no Pompidou, é tocar a infância do cinema. Antes e além do fotograma, da montagem e da narrativa: luz sobre os resíduos do tempo. Como em outras obras de Paik, uma simplicidade rara: a luz branca do projetor sobre a tela branca. A pura luz do cinema atravessa a película transparente, torna-se impura. Os resíduos se acumulam e o que o filme projeta é a própria ação do tempo sobre a matéria. Em uma leitura literal de Gilles Deleuze, a imagem não é mais metáfora ou tradução do tempo, mas o tempo mesmo, se desdobrando em sua multiplicidade.

Mas essa infância – luz branca sobre o branco da tela – já é o cinema, já guarda em germe sua linguagem, seu dispositivo. A tela branca (como uma página em branco) recebe a projeção de luz e, a partir desse procedimento mínimo, poderá receber o fotograma, a montagem, a narrativa, os gestos do cinema.

One Candle (1988), outra obra de Paik, agora em Beyond Cinema. Uma vela queima no centro da instalação. A câmera capta a imagem que se projeta, em direto, silenciosa, em duas paredes. Os projetores decompõem a imagem da vela nas três cores primárias do vídeo: azul, verde, vermelho. Aqui, como em Zen for Film, a imagem é pura presença. Reencontra sua infância icônica e nos permite experienciar o que nos transcende: o sagrado. Objeto de culto, diante do qual não se olha, mas se baixa os olhos (Régis Debray). O ícone está na infância da imagem, em seu limiar: no limite tênue em que a imagem se confunde com o objeto, a representação se confunde com a presença. A projeção se confunde com a própria vela, captada em direto.

Essa é, portanto, uma imagem que menos representa o sagrado do que nos permite experienciar sua presença, nos faz mergulhar nele. Mas, para produzi-la, o artista se vale de um sofisticado dispositivo de captação, de composição e de decomposição da imagem. Recorre a recursos de linguagem sutis e concisos. Nesse sentido, o gesto zen de Paik é uma profanação, cria uma espécie de templo tecnológico (se existe um deus aí, ele é tecnicolor!), em que a presença do sagrado, em sua simplicidade, surge de um complexo trabalho com a linguagem. Não nos enganemos, portanto: entre o ruído e a palavra, o mínimo balbucio de uma criança mobiliza, desde já, um intrincado aparato discursivo.

Giro vazio

Histórias de aventuras e viagens marítimas povoam o imaginário infantil. A vida de Donald Crowhurst poderia render uma delas. O navegador amador inglês desapareceu misteriosamente em meio a uma viagem ao redor do mundo.

Essa é a inspiração de Tacita Dean para a obra Disappearance at Sea (1996), exibida em Beyond Cinema. O filme curto, de 13 minutos, foi realizado no farol de Berwick, próximo ao porto de onde partiu o navegador: suas lâmpadas, sua maquinaria, seu giro lento, sua luz forte rastreando o mar. Planos que, em uma busca incessante, não mostram senão o que desapareceu. Essas imagens – que nos fazem contemplar o desaparecimento – também são ícones, imagens-presença: ao querer representar o irrepresentável, elas apresentam a si mesmas. E o seu giro vazio, misterioso.

O movimento lento e repetitivo do farol em busca do navegador desaparecido nos liga ao mistério da morte. Como os ícones, imagens primeiras: aquelas que nos permitem lidar com a morte, negociar magicamente com ela. Os ícones povoam de mortos o mundo dos vivos. Aí está a gênese da imagem, seu nascimento, este que, paradoxalmente, se realiza pela morte (Debray). 

Se, ao rastrear a morte do navegador inglês, as imagens de Tacita Dean nos oferecem o vazio (o desaparecimento), o que nos resta, portanto, é a pura possibilidade, a linguagem em estado latente, potencial, infantil. Diante da presença da morte tocamos a infância da imagem. 

Olhar vidrado

A matéria-prima da obra de Peter Campus é a percepção. Uma percepção oscilante, relativa: entre a pura presença do corpo e sua modulação pelas mídias, interfaces e circuitos. Percepção que é relativizada também pelo movimento e pela posição do corpo no espaço, pela captura do seu deslocamento através de câmeras e sensores.

Prototype for Interface (1972). Entramos na sala e nos vemos projetados em duas telas sobrepostas. A primeira mostra a imagem captada por uma câmera de circuito fechado de vídeo. Ao lado, outra imagem, agora do nosso reflexo em um vidro translúcido. A apreensão instantânea e defasada de nós mesmos provoca uma sensação de estranhamento, um esboço de esquizofrenia. Nosso corpo cindido em dois, levemente descolado de nossa presença na sala.

Esse jogo de reflexo e projeção também nos leva, por vias diferentes, ao limiar da linguagem, à sua infância: quando nos percebemos fora do mundo, localizando e identificando os objetos, conferindo a eles forma e nome. Quando nós mesmos nos tornamos objetos de um olhar que se vê olhando. Percepção primeira, origem da linguagem, que está na base do nosso encontro surpreendente com o mundo.

Mas, eis que nos deparamos com Criminal Eye (1995), de Tony Oursler, também parte de Beyond Cinema. A projeção de um globo ocular sobre uma superfície esférica. Ele é um olho vidrado, que não pisca e que, mesmo aberto, não nos vê. Ele assiste televisão. Olho vazio, pelo qual as imagens passam sem parar, e sem se fixar. Uma espécie de nível zero do olhar, em que se olha sem ver. Ao contrário da obra de Campus que nos faz experimentar essa defasagem entre nós e o mundo (a percepção) que funda a linguagem, Criminal Eye nos leva àquele momento último em que a imagem, tornada informação, nos impede de ver. Olhar anestesiado, quando nada mais no mundo parece ser capaz de nos surpreender.

Brinquedos

As duas exposições – Le Mouvement des Images e Beyond Cinema – nos mostram brinquedos. Os brinquedos estão na infância do cinema, como sugere Jonathan Crary. Da câmera escura ao estereoscópio, passando pelo zootrópio, entre outras traquitanas, os dispositivos da imagem em movimento criam, cada um a sua maneira, formas de ver, de se posicionar no espaço, de crer e de pensar. Criam temporalidades próprias.

Dizer que esses dispositivos (esses brinquedos) estão na infância do cinema não significa dizer que eles fazem parte de uma história progressiva cuja teleologia, cujo fim último, seria a projeção na sala escura. Ao contrário, cada dispositivo possui sua própria história, suas próprias virtualidades.  Podemos então pensar que essa infância é formada por uma variedade de mundos para a qual a projeção na sala escura é uma atualização possível.

Quando crianças, costumamos desmontar os brinquedos, sem conseguir montá-los novamente. As crianças profanam. “Se consagrar (sacrare) designa a saída das coisas da esfera do direito humano, profanar significa, ao contrário, sua restituição ao livre uso dos homens.” (Giorgio Agamben)

Profanações. Essa é uma boa maneira de caracterizar e reunir obras tão díspares. Os artistas são crianças profanadoras. Desmontam a linguagem, expõem seus vazios. Eles nos levam ao limiar da linguagem: ali onde ela é um mistério, um truque, uma traquinagem. Onde expõe sua vulnerabilidade.

Esse lugar vazio, essas peças de brinquedo desmontado, essa tela em branco, esses balbucios... o cinema se expandiu, cresceu, mas, na sala escura ou fora dela, sua infância permanece. Sim, hoje, essa infância é ameaçada pelo desencanto e pela descrença, que tornariam o nosso um olhar vidrado, que não pisca e não se espanta. E é por isso mesmo que a infância é esse lugar, mais do que nunca necessário, onde nasce a política.

Balanço


Rocking Chair
(2003), uma instalação interativa (!) de David Claerbout. Em sua cadeira, calmamente, uma velhinha balança. Ao entrarmos na sala, o balanço vai diminuindo o ritmo, até parar. Quem dá a volta em torno da tela, percebe a imagem da velhinha sentada, agora de costas. Ela contempla a paisagem lá fora, tranqüila, silenciosa. Até que percebe nossa presença na sala e, em um gesto quase imperceptível, vira a cabeça em nossa direção.

O que ela contemplava, antes de, discretamente, notar nossa presença? A morte, talvez. Mas, não seria a sua infância o que ela encontra?

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