Indiana Jones e o Reino da Caveira
de Cristal (Indiana Jones and the Kingdom of the Crystal Skull), de
Steven Spielberg (EUA, 2008) por Fábio
Andrade
De volta para o passado É difícil
nos aproximarmos de Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal sem pensar
no tempo decorrido entre a trilogia inicial e esse novo capítulo da série. Por
tempo, aqui, não me refiro ncessariamente aos anos de afeto que amarram as lembranças
dos espectadores, mas sim à cronologia diegética: se Os Caçadores da Arca Perdida
se passava em 1936, e esse último filme incorpora o vácuo de produção ao se acomodar
em 1957. Neste ano, George Lucas e Steven Spielberg tinham, respectivamente, 13
e 11 anos de idade – portanto, pela primeira vez em toda a série, a aventura imaginativa
de Indiana Jones entrará em um mundo visto e vivido por seus idealizadores. Se
esse encontro não gera exatamente um embate, é da relação entre esses dois universos
que o quarto Indiana Jones parece se construir, tencionando as fronteiras
entre infância e adolescência, biografia e criação, teoria e prática, concretude
e imaginário. Após uma brincadeira visual de mão dupla com
a logomarca da Paramount (permitindo leitura tanto pela construção quanto pela
desconstrução – de acordo com a relação que o espectador estabelecerá com o restante
do filme), a primeira seqüência irrompe em uma estrada com um traço de familiaridade
inédito na série: cruzamos a tela com dois casais de jovens em um conversível,
trajando os uniformes de rebeldia do final da década de 1950 (impossível não pensar
em American Graffiti) e convidando um veículo militar para um racha de
automóveis. Passado o breve flerte com o desafio, a câmera acompanha os soldados
em uma curva, enquanto os jovens seguem acelerados pela rodovia. A presença de
iconografia tão marcante na abertura do filme é essencial, pois assumirá como
marco inicial esse jogo de sedução entre dois imaginários distintos e, até certo
ponto, mutuamente excludentes. Se
tomarmos o caminhão militar como símbolo de um fascínio de calças curtas, o quarto
Indiana Jones se atém a um universo imaginativo infantil (de garotos, a
bem dizer), mas já aquiescendo a presença dos encantos rebeldes da adolescência.
Esses dois mundos coexistirão ao longo de todo o filme, e as faíscas da convivência
ficarão ainda mais claras em uma seqüência específica: quando Indiana Jones (Harrison
Ford) conversa com Mutt Williams (Shia LaBeouf) em uma típica diner norte-americana
– o destrinchamento iconográfico se materializa em um pente mergulhado em um copo
de Coca-Cola, em uma briga entre roqueiros e encasacados da Ivy League, ou entre
o momento em que uma cerveja é roubada e em que, logo depois, é devolvida à bandeja.
Mais do que polvilhar o quadro com simples referências de
época, Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal implode, em tela,
o imaginário de um pré-adolescente em 1957. Se na trilogia inicial esse imaginário
construía um mundo não experimentado concretamente por seus realizadores, aqui
a coincidência biográfica o põe a transitar por símbolos que convivem – nesse
contratempo entre duas fases determinadas da vida – na cabeça de um garoto inserido
em seu tempo, combinando heróis do passado com anti-heróis do futuro próximo.
Em seu aspecto mais aparente, o filme se encanta com um desfile de jaquetas
de couro, espiões russos, alienígenas, mapas, motocicletas, areia movediça, universidades,
formigas gigantes, hovercrafts, gangues que habitam cemitérios, garotas
com rabo-de-cavalo, testes nucleares, cachoeiras e múmias, concentrados em uma
infindável lista de encantos aos olhos de um garoto que tinha 11 (ou 13) anos
em 1957, e espiava frações do mundo pelas frestas de seu próprio imaginário. Esse
jogo entre universos se revela mais complexo justamente por Spielberg construí-lo
não como oposição, mas como equilíbrio semelhante ao de quem vive um entre-idades
(pré-adolescência, ou pós-infância – nada definível em livros e estudos sem o
auxílio de prefixos): Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal assimila
a principal característica de seu protagonista em sua realização, nunca deixando
de ser aventura por ser estudo de caso, de construir fantasias a partir do concreto,
de ser auto-reflexivo em seu jogo referencial, de buscar o visceral por ser acadêmico.
Indiana
Jones, o arqueólogo que acredita na necessidade de se sair das bibliotecas, é
uma das encarnações mais completas da geração conhecida como Nova Hollywood (da
qual fazem parte Spielberg e Lucas): jovens diretores saídos de escolas de cinema,
mas que aliam ao conhecimento acadêmico uma aguda vivência cinéfila. É, portanto,
bastante coerente que esse inventário de fim de década atravesse, também, as memórias
cinematográficas: estão lá o cabelo à Louise Brooks da personagem de Cate Blanchett,
o tour de force keatoneano que é a perseguição de jipes, a busca
da máxima expressividade do contraluz e das projeções em sombra de seus próprios
ícones, as gags saídas de cinemas mortos, os efeitos especiais que têm
cara de efeitos especiais, a estilização absoluta de vilões e mocinhos em um salto
do real que solidifica o trabalho de gênero. Como a aproximação
acadêmica é decorrente de um impulso anterior, é natural que a resolução final
do conflito central se espelhe em O Narrador – texto clássico de Walter
Benjamin. A distinção do conhecimento (como diz Indy ao final do filme, o verdadeiro
tesouro da humanidade) pela informação, de um conhecimento via experiência divide
o confronto final entre dois métodos de realização arqueológica. A expansão do
tempo-espaço provocada pelo retorno da caveira de cristal se constrói como juízo
final, partindo o conhecimento entre Irina Spalko (Blanchett) e Indiana Jones.
A necessidade de absorver todo o conhecimento do mundo, mesmo que com informações
de segunda mão, leva Irina à saturação: o conhecimento que ela apreende, mas não
vive, não passa de fumaça. Como contraste, temos as seqüências finais de Indiana
Jones e família, tomados pela certeza de que mais importante do que a informação
– o frio saber – é a possibilidade de se experimentar o mundo. Diante do milagre
que, movido por paixão, ajudara a gerar, Indiana Jones observa, em epifania, ruínas
serem inundadas por uma enxurrada de vida. O movimento
circular predominante em toda a seqüência final (do qual o disco voador é a presença
mais gritante) envolve Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal em
uma notável intenção de atar pontas que, ao fim do filme, percebemos que estavam,
de fato, soltas. Como as ondas produzidas quando se atira um objeto à água, esse
círculo se reproduz no filme, na série e na carreira do diretor. O retorno a Indiana
Jones parece encontrar maior sentido quando pensado como um retorno a uma infância
mais ampla, em trabalho arqueológico em que o diretor parece se perguntar as razões
pelas quais, um dia, decidira fazer filmes. O retorno das interrogações, porém,
só faz sentido por estar tomado pela vontade de inundar o passado com as correntezas
do presente. Maio de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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