Não
Estou Lá (I'm Not There), de Todd Haynes (França/EUA, 2007)
por Cléber Eduardo
Multi-filme I’m Not There
é um filme esquivo, quase impossível de se reter, de se domar sem condená-lo ao
sacrifício. Vemos imagens mais que seres visualizados, mais performances que atitudes
ou ações, mais representação que experiências diretas, mais códigos que a vida
acima deles. Tendo como figura inpiradora Bob Dylan, a quem Haynes não conheceu
pessoalmente, mas de quem teve autorição para fazer o filme, I’m Not There,
como é da condição do cinema moderno, nasce de imagens anteriores a ele (a de
Dylan). Sim, é um filme cercado de mediações, como são os de Godard, os de Bressane,
os de Sganzerla. Sua maior presença é também sua maior ausência:
Dylan, que nem sequer tem seu nome mencionado no filme, porque não se trata de
uma biografia, mas de um ensaio em torno dessa presença ausente. Presença, ausência.
Empregando como título uma canção de Dylan, gravada para o álbum “The Basement
Tapes” em 1967, mas deixada de fora do “corte final” em 1975, I’m Not There
exibe ao final a imagem de Dylan, uma imagem quase sacralizada em sua textura,
que condensa em um rosto a multiplicidade de sua identidade, independentemente
das motivações de suas multiplicações. Não custa lembrar que a canção do título,
algo posto sem notas de rodapé no filme, é do período mais enigmático do compositor,
que, depois de um acidente de moto em 1967, retirou-se para Woodstock com a família,
onde foi procurar as raízes da música americana. Houve
dois percursos mais ou menos comuns nas reações ao filme no Festival de Veneza.
Um foi a redução da complexa operação a uma inversão de sexo vivida dramaticamente
por Cate Blanchett, que faz um mix de imitação e adaptação de Dylan realmente
capaz de nos tirar o chão, expondo o código da representação e gerando seu efeito
mimético. No entanto, I’m not There não é só Cate. É ela também. Mas é
mais, bem mais. Outra reação comum em Veneza, mais compreensível por demonstrar
a crise de uma certa crítica diante de obras sem sínteses ou explicações para
seu encadeamento visual, foi a acusação de um “vale tudo”, como se quebrar pratos,
sem esquemas tão evidentes, com somente um dispositivo de desdobramento do personagem
matriz em vários personagens, fosse falência da noção de arte. Atacar o filme
por esse caminho é também recusar aos artistas caminhos diferentes dos esperados
deles. Demanda de unidade em um mundo onde os centros andam dissipados. Em
I’m Not There, em vez de redução facilitadora, temos dispersão/expansão.
Haynes retoma o caminho de Velvet Goldmine, com sua reinvenção de um universo
pop codificado (lá o do glitter rock e seus mitos, como David Bowie), para evidenciar
os efeitos dos códigos sem decodificá-los. Por que o pop? Porque parece mais ou
menos claro que, para Haynes, o pop é bastante revelador dos códigos de atitudes
de seu tempo histórico, por colocar subjetividades em contato e confronto com
suas formatações, resultando, nos dois filmes, na mobilidade dos “eus” e na falta
de unidade do sujeito. Há a aparência, a atitude, as entrevistas, a persona social.
Onde sobra lugar para a subjetividade mais íntima fora dessa esfera pública. Há
um não-visível a vir a luz, como supõe um repórter inglês no filme, ou somente
há luz na imagem? O cineasta não se lança a fazer uma análise
sobre a modernidade e seus supostos prefixos. Está mais interessado em atmosferas
midiatizadas ou não, e na mentalidade desses universos, como ficcionalização sem
tarefas explicativas e biográficas, buscando a invenção e não a explicação, o
cinema e não a história, as imagens e não as almas, por assim dizer. Haynes não
é contra a mobilidade do mundo filmado. Ele a transforma em estética. Proposta
de excessos e permissividades variadas, transita entre cor e preto e branco, entre
imagens de arquivo e encenadas, entre situações pelas situações e um documentário
sobre um astro do folk (?), entre a construção de um discurso/imagem por parte
do artista e sua recusa em um momento posterior (a traição à coerência autoral),
entre tempos históricos dos vários núcleos narrativos, entre personagens distintos
girando em torno de uma imagem motivadora (a de Bod Dylan), entre Christian Bale
e Cate Blacnhett. É um filme sem medo da perda dos referências
centrais e dos núcleos organizadores de sentido, disposto a surfar na ausência
de uma síntese explica-tudo, sem querer como ponto de partida e de chegada uma
matriz de motivação/entendimento/explicação, capaz de decifrar tudo o que haveria
para ser decifrado. Mas há mesmo? Impossível. Porque a dispersão e dilatação do
filme por seus variados segmentos narrativos não encontra laços diretos em seus
percursos, limitando-se a compor segmentos conectados por algo anterior ao filme
(Dylan), que por sua vez é empregado como imagem-matriz pelas mutações e não pelas
permanências. Nada há para decifrar ou entender porque a
esfinge é em si mesmo nesse processo de aproximação, ela é a própria mobilidade
e não fixação, o folk, a guitarra elétrica, o gospel, o atentado contra a nação
romântica de autoralidade e autor, que se torna a própria traição a essa noção.
Só há de Dylan em I’m Not There a instância narrativa. E essa é maleável
e movediça, aproxima homens, artistas e contextos políticos dos EUA do pós-guerra,
mas não é sobre essa aproximação. Talvez seja sobre a dificuldade
de se estabelecer essas relações sem cair em reducionismos e em atendimento aos
famintos por organização, porque o múltiplo sempre oferta chaves nem sempre compatíveis
com as fechaduras, porque a efemeridade de determinadas autorias acaba por colocá-las
em questão, porque é mais cômodo acreditar em unidades indivisíveis. I’m Not
There canta em imagens seu momento histórico sem querer negá-lo, mas sim absorvê-lo
e devolvê-lo a nós em forma de arte. Setembro de 2007
editoria@revistacinetica.com.br
|