emulando

Avatares da fabulação
por Luiz Soares Júnior

Island of the End of the World (Ang isla sa dulo ng mundo),
de Raya Martin (Filipinas, 2004)


Onde se incrusta a fábula, no registro etnográfico? Em Island of the End of the World, primeiro longa do filipino Raya Martin, começa no trabalho das mãos. Em closes e planos médios cerrados, acompanhamos o trabalho – o obrar – dos habitantes dessa ilha: uma crônica laboral. Em contraponto, somos escoltados pelas histórias que teimam em brotar dos lábios desses homens e mulheres. Mas é o trabalho manual que, em sua trama de engastes e combinações entra a cadeia produtiva e a imaginária, guia o cineasta-antropólogo, em sua tateante descoberta de um mundo outro que o homem deve progressivamente aprender a tornar seu: espectral e metafórico.

Cinema em camadas: a história – narrada ou cantada – ausculta a opaca zona do tato, na ação do trabalho; ela permite à ação um desdobrar-se e um projetar-se no universo lúdico, zona fronteiriça da realidade onde todas as coisas são duplas, onde a indeterminação reina, onde a labuta reiniciante é o selo de instauração de um novo velho mundo, regido pelas mesmas regras de condensação, figuração e finalmente aparição que presidiram aos mundos forjados por demiurgia. Neste processo de humanizar o que, a princípio, se opõe/refuta/situa o humano, encontramos o ritual. E, já neste primeiro longa, a fascinação do cineasta com cartografias encantatórias dos credos e ritmos de uma comunidade – fascinação que ele estiliza com grande senso do chiaroscuro, do tableaux vivant e da alegoria política de uma identidade nacional, no extraordinário A Short Film About the Indio Nacional – está presente. Mas aqui com um torpor rústico, quase preguiçoso, nascido da mínima intervenção do olhar, correlata à máxima concentração do gesto, dos passos e dos ritmos, como quando nos preparássemos para um eclipse e subitamente nos déssemos conta de um eclipse é um bloco de estanho, onde se refletem as trocas entre a limpidez rutilante de uma constelação e o opaco degradé do halo lunar.

Assim, o acontecimento (antes: o acontecer, o acontecendo) dramático – evocado ora por depoimentos oscilantes entre o conformismo depressivo e a exaltação alcoólica diante de um passado desaparecido, ora por uma festa de casamento, uma dança desajeitada, operações de pesca, investigações topográficas dos departamentos institucionais da cidade, como a  visita à biblioteca – deixa se aperceber em suas margens, em pequenos e insignificantes detalhes, percorridos pela câmera com a avidez e a instabilidade de foco de quem “se inicia” nos mistérios de um povo situado à margem da História: o tamborilar de dedos do agrimensor sobre os mapas, os passos trôpegos da velha que dança e lamenta a perda do marido (como se esta dança última fosse a atualização precária e patética da festa que inaugurou sua adolescência), as paisagens vistas de relance e de revés, à medida em que o ônibus se perde em direção às profundezas da ilha.

O que Martin propõe aqui é uma espécie de pedagogia tatibitate: um fuçar, um cavar e um ser cavado pelo objeto que, na boa tradição hegeliana, nos des-vela à medida em que o des-velamos. A terra a ser “re-encontrada” não é virgem, carrega os traços de uma mobilização capitalista (ainda que em grau incipiente) e de uma certa divisão de classes: os relatos dos pescadores são constatações presentes, industriosas, imanentes do estado das coisas, “de como nos virar”, do estado da maré amanhã, de como havia mais peixe no ano passado, mas antes de tudo de como dar conta da matéria bruta vizinha (diante de nós, mas sobretudo ao nosso redor, matéria com a qual, em certa medida, nos confundimos) e transformá-la em instrumentos de trabalho, em refigurá-la de acordo com nossas pretensões à sobrevivência, ou seja: indicam ainda uma subserviência à Natureza, ao ciclo necessário e fatal de “devorar para não ser devorado”, de resistir ao império cego da Necessidade através do Trabalho; já as conversas com o agrimensor, o rapaz do museu, os próprios membros das equipe definem planos (planificações), perímetros calculistas onde se reelaboram os fins de uma injunção metódica e regular, destinada a fundamentar o futuro.

Ora, entre a “blocagem” do presente (ao presente), efetivada na ação mundana dos pescadores, e na abertura ao futuro, prometida pelos métodos e cálculos dos homens de poder, existe a utopia destas vozes em off e destas canções que percorrem, ao longo de suas panoramicas, o espaço mítico da comunidade. Na brecha cavada entre o mundo alienado-de si do trabalho e do mundo excessivamente cônscio-de-si (dos homens de saber e de poder, dos programadores e construtores da futura cidade que a ilha deve tornar-se), encontramos esta atenção aos gestos, às canções à beira da fogueira, às deambulações de bêbados, de desocupados, de mulheres enlutadas, seus gritos, ao imprevisto e ao fatal, ao que não cabe na jurisdição teleológica do futuro, ao que escapa ao território “prático-inerte” da laboração.

São nestes interstícios – um sopro de viração, diria – que Martin busca instaurar a sua pedagogia: ao mesmo tempo, uma celebração da fabulação (do imaginário fabuloso) popular, das canções de gesta, da música de acalanto e de luto, do tempo atento e atencioso com que a câmera assiste (em dois sentidos: velar por e contemplar) os dedos das mulheres cerzindo redes, roupas, homens. E uma circunscrição, paulatina e diretiva – com seus longos travelings documentais, acompanhando a pesca; seu plano fixo inquisitorial, diante das explicações dos funcionários da cidade; com seus cortes em negro, que sustam a temporalidade da sequência em pontos cegos que lhe interditam toda aspiração à completude, que apresentam a visão funcional e profissional da cidade como descontínua, aberta, incompleta, em impasse, sempre por fazer e por construir – desta zona urbana onde se inscreve o cotidiano institucional.

E não é sempre neste “entre-deux” que se dá o mito, a fábula originária de um mundo? Esta alternância de pontos de vista não tanto entre classes, mas entre pessoas que desempenham funções profissionais diferentes, pescadores e agrimensores, me lembra a démarche de Jean Marie Straub naquele que talvez seja seu filme mais estritamente brechtiano: História de Classes. Ao interpor, contra a palavra oficial e oficialesca de César, o testemunho do encarquilhado soldado, Straub dá uma inflexão decisiva à História, ou ao menos à sua representação: esta nasce e desemboca na história, a grande História tem foz e nascente na experiência em comum de homens situados num mundo em constante mutação – na pequena história, cambiante, laborante, presente. Se o documento histórico é falsificador,- na mesma medida e com o mesmo sentido em que, para Proust e Adorno, o museu o é - é porque ele fixa e estatui um processo ( por essência revolucionário) em que se trocam, mobilizam e  interagem poderes, postos, papéis. Um work in progress. Ele transforma o fluxo em efígie, documento formal, e nisto soterra o potencial gregário, contraditório, impulsivo, implosivo da palavra.

Raya Martin capta, em seu belo panorama, os momentos incipientes onde o projeto de homens em comum – comuns no trabalho, parceiros na vida e na morte -, começa a sofrer a erosão, típica de toda grande comunidade ou Estado: do tempo pela Lei, da situação no mundo por um domínio sobre o mundo, do Acaso pela Jurisdição. Mas fiquemos ainda com as brisas, os cantos, os acalantos deste tempo presente, os avatares da fabulação.

Fevereiro de 2011

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