in loco - cobertura dos festivais
Il Divo (idem), de Paolo Sorrentino (Itália, 2008) por
Fábio Andrade Espetáculo
de excessos
Ao lado
de Gomorra, de Matteo Garrone, Il Divo saiu do último Festival de
Cannes carregando o peso crítico de representante do “renascimento do cinema italiano”.
Vistos os filmes, é inevitável a problematização da eleição (ignorando, para render
a discussão, que toda eleição do tipo já é deveras problemática). Em primeiro
lugar, porque algo que nunca morreu não precisar renascer: se o cinema italiano
já nos deu Rosselini, Antonioni, Visconti, Fellini e tantos outros inestimáveis
artistas, hoje segue relevante com nomes como Nanni Moretti, Emanuele Crialese
e Kim Rossi Stuart sempre rondando as listas dos filmes mais interessantes de
seus anos. Em segundo, porque Gomorra e, principalmente, Il Divo
usam uma estratégia de cinema já bastante familiar no panorama mundial atual,
mas de resultados estéticos ainda bastante pouco convincentes: a de uma certa
estética transnacional que uniria sujeitos como Guy Ritchie, Fernando Meirelles,
Alejandro Gonzales Iñarritú e Park Chan-wook. Embora partam, muitas vezes, de
temas locais, a maneira de se aproximar desses filmes não é local ou tampouco
estrangeira: é filha de lugar nenhum. Não existe, portanto,
nesse cinema de aeroporto um diálogo com a territorialidade geográfica, cultural
e imaginária local (Miguel Gomes, Lucrecia Martel, Jia Zhang-ke, Apichatpong Weerasethakul)
ou mesmo com a saudável desterritorialidade cinematográfica que serve como combustível-matriz
para alguns dos cineastas mais interessantes da atualidade (Wong Kar-wai, José
Luis Guerín, Johnnie To, Hong Sang-soo). Existe, sim, um desejo agudo de aproximação
com um certo repertório do cinema contemporâneo norte-americano, mas que reflete
a ingenuidade de crer que os signos desse cinema seriam obra em domínio público,
como se a relação estabelecida com eles estivesse partindo de uma totalidade de
Cinema (com c maiúsculo), sem nunca se dar conta de como esse universo é fascinante
justamente por ser restrito e particular – explicando, por exemplo, a ausência
de realizadores americanos nas duas pequenas listas acima: os EUA são o lugar
onde a desterritorialização é, sobretudo, uma questão de identidade local. É
difícil, porém, não ficar impressionado com a destreza com que Paolo Sorrentino
transita entre suas influências, do flerte com o universo dos quadrinhos de um
Robert Rodriguez, à ironia caricatural dos irmãos Coen; do fluxo encadeante de
imagens de um Todd Haynes, à fragmentação do quadro de Brian De Palma. E, para
manter as coisas razoavelmente perto de casa, há, claro, um desejo escancarado
de se tornar Martin Scorsese. A questão mais problemática de Il Divo não
é, porém, fazer uso desse repertório; mas sim passear por essas cascas de cinema
sem nunca atentar para o seu conteúdo, sua substância central. Por isso, às vezes
um mesmo recurso pode ser usado de maneira surpreendente, em um momento, e nefasta,
em sequência – basta pensarmos no uso das canções à Tarantino, que constrói tanto
minutos mais vitais, quanto aberrações como “Da Da Da”, da banda alemã Trio, nos
créditos finais. O
resultado é de uma esquizofrenia tão manca quanto fascinante, pois nesse desfile
por galerias de tipos cinematográficos, Sorrentino chega, talvez, ao feito mais
surpreendente de Il Divo: reduzir a realização cinematográfica às suas
mínimas partes, gerando, assim, uma espécie de novo cinema de atrações à Eisenstein.
Todo plano – sempre curtíssimo, a não ser que se torne um plano-sequência, claro
– é cuidadosamente pensado como pulsão visual; todo movimento de câmera é certeiro;
toda fala é cavada nas pedras do definitivo. A questão macro é que não estamos
diante de um filme que se ambiciona como experiência de atrações, mas sim de um
longa-metragem assombrado por uma monumental e imaginária obrigação narrativa.
Assim, não deve ser bom sinal que Il Divo seja um filme muito mais interessante
quando desistimos de ler as legendas. É bastante sintomática, portanto, a maneira
como Sorrentino começa e encerra seu filme: uma cartela de texto informa dados
“relevantes” da história que teriam ficado de fora do tempo regulamentar de Il
Divo. Estamos
diante de um projeto de cinema tragicamente partido entre o deleite estético e
a obrigação inventada para com a história oficial, a necessidade de informar o
espectador. Não há, em momento algum, um encontro entre a narrativa e as imagens;
são dois caminhos que correm, do início ao fim, por berrantes caminhos paralelos.
Para Sorrentino, não basta escolher um ou outro; seu cinema quer ser tudo, e,
dentro dessa totalidade, ainda quer ser o tudo dentro das pequenas partes: todo
plano deve ser um grande plano; toda fala deve ser uma grande fala – seja pelo
conteúdo, seja pela forma. É o cinema da overdose de dós de peito, sem perceber
que, quando todos os elementos gritam pela atenção do espectador, o tiro engasga
e explode a cabeça do atirador: a exigência crônica pela atenção leva, ao fim,
à desatenção completa. “Eu não acredito no acaso. Eu acredito na vontade de Deus”.
É esse o bordão de Giulio Andreotti (Toni Servillo), e é a ele que responde a
lógica maior de Il Divo. Em mundo controlado pelo diretor, não resta dúvidas:
o Deus cuja vontade é suprema é, ao e ao cabo, o próprio Paolo Sorrentino. Ao
espectador, resta uma cadeira bem distante da tela, de onde ele pode observar
esse magnífico robô em todo o seu esplêndido e estúpido movimento Outubro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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