eletrônica
Darwinismo sádico
por Cléber Eduardo

O interesse do crítico por Ídolos, cabe logo esclarecer, foi gerado menos pelo modelo do programa, por assim dizer, e mais pela repercussão. Diante de tantos comentários, de tantas reportagens (não lidas, mas vistas), pareceu necessário, para a primeira entrada no ar de Cinética, observar esse fenômeno de audiência. Poderia até ter lido o material publicado na imprensa sobre o programa, mas, uma vez curioso, optei por ignorar as informações disponíveis e limitar-me à experiência de assisti-lo – acompanhando até o início da fase final (na qual disputam 30 candidatos a astros, agora avaliados pelos votos do espectador). Apenas sabia da condição de remake do programa, cuja matriz é o norte-americano American Idol – que soube ser grande sucesso de público, inclusive no Brasil.

Mais assíduo espectador dos “programas de realidade artísticos”, o editor de Cinética, Eduardo Valente, me informou que, nesse modelo reality show de calouros, Ídolos não é novidade – nem mesmo no Brasil, já que tem semelhanças com os anteriores Fama e Popstar. Por todos esses motivos, o texto em questão corre o risco, inevitável, de parecer chover no molhado. Arrisquemos, no entanto.

Logo nas primeiras eliminatórias, ficam claras as estratégias: um casal de entrevistadores (excessivamente animados) abre espaço para concorrentes de rostinhos “idolatráveis” e para figurinhas ali adequadas para o papel de mico. Nas sessões de cantoria, sem instrumento algum, predomina o constrangimento. Ele pode surgir da própria voz e da interpretação dos candidatos (muitos deles aparentemente presentes na competição apenas para “aparecer”) ou da reação dos quatro jurados após as apresentações. Não importa. Porque o que importa, ao menos nos primeiros programas, onde se avalia o material humano bruto, é o potencial de humilhação. A edição das eliminatórias priorizou os momentos nos quais os jurados sapateiam em cima dos eliminados e os avisam sobre sua desqualificação como cantores e pretendes a ídolos. Ouve-se a repetição de frases, como “você não é cantor”, ou “você não tem o perfil do que estamos procurando aqui”, e, nessas manifestações, os juízes escancaram o papel deles ali: o de exterminadores de quem não se adequa ou se encaixa em um padrão industrial de voz, imagem e repertório. São os jurados que são os ídolos, as celebridades da vez, os com mais espaço em “cena”. São eles que, durante a atração, foram ao Pânico, versão TV, gozar da popularidade como eliminadores, mais que como classificadores.

Vemos a reprodução da lógica da “peneira” no futebol, mas com o incremento de práticas tirânicas.  Os rejeitados precisam ser colocados para baixo, com grande intensidade e violência, como que para aprender a não mais ter ambições utópicas. Cabe uma comparação, já que adentrei ao campo do futebol, com a variação boleira da Rede Bandeirantes, o Joga Bonito, no qual adolescentes, após demonstrarem suas habilidades e serem instruídos por craques aposentados dos gramados, são avaliados e aprovados-reprovados. No momento de anunciar se o candidato fica ou cai fora do programa, cria-se uma atmosfera de respeito, quase de lamento, tanto por parte dos julgadores como da edição, extraindo, nesses momentos chaves, a dor do eliminado e a euforia do preservado. Isso não significa que, em Ídolos, não haja choros e risos, também, mas, como o contexto é de “tiração de onda”, e não de respeito ao sonho alheio, essas perdas e conquistas são banalizadas, pois vizinhas do escracho pelo escracho

Não basta fazer a curadoria do grupo de pessoas capazes de virarem produto imagético-musical. É preciso pisar e cuspir em cima de quem não está apto para esse posto, explicitar a impossibilidade do candidato em se tornar uma imagem pública e uma voz irradiada. Ídolos cultiva o tempo todo o asco pelos rejeitados e o sadismo diante da inviabilidade de uma ascensão social pela mídia. Os jurados regozijam-se em seu exibicionismo de divindade tirânica, em sua tarefa de escolher quem merece ou não a inserção midiática – sempre fazendo questão de se colocarem como autoridades absolutas, capazes de escolher os visíveis e audíveis.

Não ficam fora da edição as reações dos desclassificados após a grosseria ideológica dos desclassificadores. Há de ameaças de morte à desqualificação do programa. Pura balela: como há finalistas de todo o país, como alguém sairá vendedor, como o programa dará uma mão a algum anônimo, as humilhações são legitimadas. Ou seja: os humilhados merecem o tratamento dispensado, porque, afinal, eles têm de ser abortados para dar espaço aos vencedores. A suposta auto-crítica terceirizada do programa, vinda de supostos eliminados ressentidos, acaba sendo apenas um reforço para a idéia do justo darwinismo musical.

Na segunda fase, um dos jurados, em uma reunião com quem se manteve no programa, já vai avisando: “Não temos mais cantores ruins”. Portanto, em vez da cultura da humilhação e do constrangimento da primeira fase, que é variação de estratégias usadas em programas de acerto de contas familiares e em testes de fidelidade, temos agora o momento afirmativo. Ídolos deixa de ser programa de extermínio e se torna um programa de trampolim para o sucesso. Não há mais micos nesse segmento, mas, sim, o drama da vitória ameaçada ou confirmada. Muda o tratamento, os jurados amaciam a voz e os termos.  Só respeitam o talento e o potencial da vitória. Aos derrotados, a mesma frase, repetida pelo casal de repórteres: “Tudo valeu a pena”. 

Também há uma mudança de visual nas fases finais. Predomina os candidatos bem paginados, jovens, com padrão parecido de voz. Ser ídolo é ter uma série de características que já estão acertadas com o senso de indústria. Basta ir atrás delas, sem descoberta, sem risco. As diretrizes e critérios estão escancaradas pelo repertório pedido para os candidatos cantarem em playback: músicas de Skank, Daniel, Rapazola, Pitty, Rouge e Babado Novo. Em outras palavras, busca-se algo “igual” ao modelo industrial. Há um ou outro menos adequado, acima do peso ou com rostos menos “pop”, nessa fase final. Mas em geral são candidatos idolatráveis. Por isso, a festa e o luto: vemos o choro dos eliminados, com baladinha suspirante, e a dança dos finalistas, com pop sacolegante hispânico. Ídolos deixa aí de ser um programa cômico, que tenta extrair sua graça estúpida e sádica do que o material humano pode proporcionar, e se torna um programa dramático. O diferente já devidamente cuspido fora – quando não alvo de cuspe. Ídolos prega a velha lógica do “cada macaco em seu galho”.



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