in loco - cobertura dos festivais
O Dia da Transa (Humpday), de Lynn Shelton (EUA,
2009) por Fábio Andrade Meta-bromance
Ao longo da história do cinema, existem inúmeros
casos de absorção, pela indústria do cinema, de inovações de linguagem surgidas
dentro de um ambiente de vanguarda. O caso mais clássico talvez seja o da steadycam
– aparelho inventado para permitir a mobilidade de câmera dos cinemas novos, mas
sem a agressividade da câmera no ombro –, mas esse processo auto-fágico está em
constante movimento, oferecendo sempre novos exemplos (da relação de Brakhage
com o videoclipe à fragmentação da montagem incorporada ao telejornalismo). Em
O Dia da Transa, porém, existe uma inversão um tanto mais rara pois, aqui,
é o cinema "de arte" que se aproxima e incorpora uma das criações mais
vigorosas do cinema mainstream recente: o bromance. Sim, O Dia
da Transa pega diversas das questões centrais do grupo de Judd Apatow e as
repensa para o ambiente do cinema independente norte-americano – com sua câmera
solta, a mise-en-scène de aparência improvisada, a iluminação parca quase
sempre extraída de fontes práticas do próprio ambiente, os atores desconhecidos
– visando uma relação com o público que, aparentemente, se distancia de sua fonte.
Em
essência, não é um processo tão distante da aproximação feita pela nouvelle
vague com diretores como Hitchcock. Ainda assim, o potencial catastrófico
desse deslocamento não se realiza por um claríssimo porém: Lynn Shelton não só
tem plena consciência do movimento que ela está propondo, como constrói no espectador
essa mesma consciência. Afinal, O Dia da Transa é sobre si mesmo: um filme
sobre a idéia de se levar o bromance às últimas consequências, com a bêbeda
idéia de se produzir um vídeo para um festival de pornôs "artísticos"
(ou, como eufemizam os próprios personagens, "um filme de arte erótica")
onde dois amigos heterossexuais (um deles, casado) fazem sexo explícito para provar
o tamanho de seu amor. Na faixa comentada de Superbad, Jonah Hill lembra,
com perceptível deboche, de uma crítica que dizia que para Superbad alcançar
o que almejava, era necessário que os dois amigos fizessem sexo ao final, com
fazia Alfonso Cuarón, "in the beautiful Y Tu Mamá También". O
Dia da Transa não só oferece essa questão, como discute, com isso, seu próprio
procedimento: levar esse conceito às últimas consequências é, em si, um ato de
particular validade artística? O filme, curiosamente, parece
concluir que não. Deslocar uma ação de seu ambiente para validá-la publicamente
não produz bem algum – não à toa, a filosofia do tal festival é a de queimar todas
as fitas após essa única exibição pública. É interessante, portanto, que Lynn
Shelton importe uma premissa para, ao fim, recusá-la. Pois o que existe de valioso
no cinema independente norte-americano é menos essa chancela artística que ele
se tornou – sendo Sundance o efeito mais óbvio – e mais a sua dedicação em deslocar
a atenção dos grandes acontecimentos para os miúdos; da encenação espetaculosa
para o improviso da intimidade. É essa inversão que conecta sujeitos tão distantes
quanto Cassavetes, Gus Van Sant, Andy Warhol e os primeiros filmes da nova Hollywood,
a quem Lynn Shelton busca se filiar. São diretores que, ao contrário de Larry
Clark e James Cameron Mitchell, percebiam o sexo frontal como algo não muito distante
da lógica do espetáculo do cinema mainstream (lembremos, aqui, do essencial
Blowjob, de Andy Warhol), e que preferiam problematizar sua representação
a simplesmente representá-lo. Com
ambições semelhantes, O Dia da Transa tem momentos de maior força justamente
quando baixa seu tom. Ali, quando a câmera precisa estabelecer uma relação entre
as pessoas, e dela com essas pessoas, Lynn Shelton cria momentos de intimidade
bastante sólida, que são fortes justamente pela honestidade de sua discrição.
Isso é perceptível desde o enquadramento da única cena de sexo consumado em todo
o filme, até pela produção de proximidade gerada pelo extremo plongeé na
cena em que Ben (Mark Duplass) conta Andrew (Joshua Leonard) sobre um breve desejo
homossexual sentido na adolescência. A câmera se coloca frontalmente, no teto,
justamente para onde olham os personagens em seu momento de maior sinceridade,
deitados ao chão, conversando como velhos amigos. O olhar para o teto – que é
um olhar para fora; um olhar de sonho – se torna um olhar para a câmera,
e ali se conquista uma cumplicidade plena entre as duas partes. É essa natureza
de relação entre câmera e personagem que o cinema independente norte-americano
melhor estabeleceu, e que Lynn Shelton consegue – com alguma regularidade – recuperar
em O Dia da Transa. Outubro de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
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