ensaios
Hugo Cabaret: a féerie prostituída
A Invenção
de Hugo Cabret: Scorsese e o fetiche de ser contemporâneo
de Méliès
por Luiz Soares Júnior
"Um dia
em que filmava com desinteresse a praça da ópera,
uma interrupção na máquina que estava usando
produziu um efeito inesperado: necessitei de um minuto para desbloquear
a película e tornar a pôr o aparelho funcionando.
Durante este tempo, os transeuntes, ônibus e coches haviam
mudado de lugar. Quando projetei o filme vi prontamente que um
ônibus Madeleine-Bastille se havia transformado em um carro
fúnebre, e os homens em mulheres. Havia descoberto o truque
por substituição, o chamado truc à l'arrêt,
e dois dias depois intentava as primeiras metamorfoses de homens
em mulheres".
George Méliès
“A visão aproximada tem
uma qualidade táctil; a distante, espectral. Se pegarmos
uma jarra e a trouxermos para perto de nós, convergiremos
nela (e para ela). Parecemos integrarmo-nos a ela, empossarmo-nos,
sublinhar o seu caráter rotundo. O objeto próximo
adquire a indefinível corporeidade e solidez de um volume
‘preenchido’. (...) Este mesmo objeto visto à
distância perde sua corporeidade, solidez e plenitude. Agora,
não mais é uma massa compacta, claramente rotunda,
com suas protuberâncias e flancos curvilíneos; perdeu
‘presença’, e se tornou uma superfície
não-substancial, um espectro desencarnado, composto apenas
de luz”.
Ortega y Gasset, Sobre Ponto de vista
em arte.
“Classicism is based
on presence. It does not consider that it has come or that it
will go away; it merely proposes to be there where it is. It is;
like God, so it affirms”.
Donald Sutherland, On Romanticism
Os contos de fadas sempre contam histórias escabrosas; ou antes: são grandes bailes de máscaras para verdades que não ousam dizer o nome. Não quero invocar aqui a mais do que manjada parceria entre Eros e Thanatos na relação com nossa mãe que aparece num conto como Chapeuzinho Vermelho; aqui, o nosso amor pela mãe (ou a “vovó”) necessita do complemento sem o qual nenhum amor se sagra e se sacra, o desejo de Morte por ela (ela, nossa Origem): precisamos travesti-la de lobo – de radicalmente Outro – para nos darmos ao luxo de matá-la, e assim seguirmos. Todo conto de fadas segue este esquema de acerto de contas com as origens – de um “voltar-se para trás” sem o qual não há horizonte possível de reconciliação; portanto, de futuro. Operação genealógica perversa, que nasce (e morre) de um desejo predatório para com aquilo que nos é (até então) mais caro, uma parte de nós, até que precisamos crescer – e o que era alimento e refúgio se torna a pedra de toque de um cruel litígio: permanecermos à sombra (e à imagem) de nossos pais ou tornarmo-nos Outros – nós mesmos –, ainda que às custas de sua (nossa) autofagia? É preciso matar em nós a infância – e por ela o aconchego e o sussurro caricioso, o fora de quadro do útero e da casa da avó, para enfim nos abrirmos ao mundo – e vocês sabem, adquirimos anticorpos, Ethos, Logos: outros amantes, outros colos, outras arenas. Nossas arenas.
A Invenção de Hugo Cabret
é outro filme (mais um filme) que nasce desta démarche,
elegíaca e terrorista, da necessária violação
do Mesmo – das Mães, na palavra goetheana
- para a terraplanagem de novas rotas. O seu travelling
dianteiro de abertura literaliza este movimento regressivo, este
recuar e retroagir em direção ao que fui.
Mas este movimento a rigordeveria ser de mão dupla: um
tomar impulso, um voltar-se para trás com o fito de acumular
distância, e assim nos arremessarmos para a frente.
É uma condição necessária –
mas não suficiente – para o desvelamento de um possível
novo Eu. Não é esta, porém, a direção
do cooper de Hugo. O filme parte em busca dos
pais: o pai de Hugo, mas também o grande Pater famílias
para todo um cinema de transfiguração do mundo (classicismo)
pela luneta mágica da subjetividade (expressionismo) –
Georges Méliès, verdadeiro Cagliostro moderno.
Duas figuras paternas, dois expedientes de liquidação do passado (das origens) com vistas a uma renovação da vida. Mediadas aqui pelo fantasma (outro) de Dickens – o Dickens dos grandes painéis desesperançados da infância, do David Copperfield e de Grandes Esperanças: rondas labirínticas, fedendo a gótico e gim, em torno de Origens suspeitíssimas; desgarros por espaços fechados, claustrofóbicos; águas-furtadas, tavernas lovecraftianas, mansardas. Espaços à imagem e semelhança do útero materno, é claro. Hugo aqui também possui dois espaços particulares, punheteiros, onde se julga ao abrigo do mundo, achatado sob o fundo de uma placenta imaginária: a torre do relógio e o nosso túmulo amniótico favorito, a sala de cinema. E ainda a cereja do bolo deste percurso entrópico, um objeto fálico: o autômato de metal deixado por seu pai.
Há
um grande filme na história do cinema que detém
a mesma dívida para com os mesmos fantasmas: origens secretas,
Dickens e rêveries góticas – geralmente o melhor
expediente que a literatura encontrou até aqui para emprestar
uma aura aos marginais, para assinalá-los ao menos
– eles, que nunca detiveram um espaço privilegiado
na história da representação clássica
(com exceção dos anões de Velázquez,
Bruegel, Goya, os lieders de Mahler). Este filme chama-se Moonfleet
(foto), de Fritz Lang.Mas Moonfleet é um
Bildungsroman malvadinho: esta travessia em direção
ao primevo e ao originário tem como guia um Pai –
um novo velho Pai, um Pai mascarado – que é também
um arrivista, um criminoso, um sujeito que usa o filho para descobrir
um tesouro. Um Outro. Um Pai iniciático, o mestre de cerimônias
da criança numa outra dimensão – o mundo dos
adultos, onde se sofre e se é sofrido pelo mundo; o mundo
da Morte e da Linguagem, tenebroso e sensual, feérico e
terrífico. Lang nos descreve uma trajetória clássica
de reencontro com as origens (o Fim e o Princípio, o Pai
e o Filho, a Casa e o Mundo). Mas lhe dá uma inflexão
maneirista – a ênfase no décor e nos rituais
de iniciação, na fantasmagoria da cena, no trompe
l’oeil do plano. Esta inflexão perverte a reconciliação
clássica numa diferença radical, num impossível
“volta à casa”: ao final desta aventura, por
causa do filho e em nome do filho (para que ele cresça
e apareça), o Pai tem de morrer, e uma nova velha história
assomar à cena. O epigrama oracular de Wordsworth
é ilustrado de forma crepuscular: o menino é pai
do homem.
No
carrossel bovino de Scorsese, o menino não vai à
cata dos pais para expropriá-los e tomar seu lugar, percurso
de toda e qualquer experiência saudável, subjetiva
ou cultural. Não. O caminho é invertido, e
em nome de um regressivo penchant que me parece um tanto típico
de nossa época; o menino não vira homem –
ou seja: não transforma a experiência em Logos, o
em-si em para-si, o Mesmo em Outro. É o mundo agora que
deve curvar-se ao tatibitati da infância, e lambuzar-se
neste museu de Madame Tussaud (des)animado que um uso venal do
digital vem impondo ao cinema. O culto da bela imagem, do manequim,
da silhueta, da caricatura - em suma, do kitsch –
transforma Hugo Cabret num fetiche particularmente apto a ilustrar
a historinha contada por Kipling no “Conundrum of the workshops”
(e reeditada por Orson Welles com fins profanatórios e
desmistificadores em F for Fake): Era uma vez um pintor
“retratista” (leia-se: um classicista avant la
lettre, alguém que ainda acredita na arte como mimesis,
embora já não seja um contemporâneo de Cro-magnon,
e sim de T.S. Eliot). Ele sentava embaixo da macieira e pintava
a macieira defronte. Certo dia, um diabinho postou-se sobre o
seu ombro, curvou-se sobre o quadro que pintava, e dando uma risadinha
cáustica, murmurou: “É bonitinho!!! Mas é
arrrte?”
O artista (mimético, ou clássico)
que pinta árvores como se fossem arte é
uma espécie de novo Adão, um inocente – alguém
que acredita que a representação e o ser coincidem
absolutamente, que não há diferença. Para
ele, arte é objeto de crença, não de criação
e trabalho – mediação, portanto. Ele permanece
nos primórdios, em que arte ainda era uma forma de crença,
em nada distinta da religião. Mas é um Adão
que chegou tarde demais (daí a ironia do diabo: mas é
arte?). Passados 1 milhão de anos desde a primeira
pintura de Lascaux – retratando o sol, os veados do jantar
e a vovó a enterrar –, um artista não
tem mais o direito de ser apenas mimético e retratar
o mundo diretamente, como se não houvessem mil mediações
entre ele e nós, mil distâncias intransponíveis.
Como se arte e mundo fossem um só. Ou, pelo menos, não
pode se achar no direito de julgar-se artista, e que o que faz
é arte. Há um lugar no mundo de hoje, como coloquei
acima, para estas operações naîves:
é o kitsch, o Liberty, o Jugendistil, os desfiles
de moda, a TV; a “arte” decorativa.
Pois este é o lugar de Hugo.
Scorsese quer fazer bonito e colorido, como julga que um dia fez
Méliés. A sua arte é um decalque, uma xerox
em carbono cor-de-rosa, um pobre fetiche. É uma criança
que reteve da origem apenas o tatibitati e a polução
noturna: quer voltar à infância para nela se espojar.
Sofre da mesma síndrome de Peter Pan esclerótico
do Spielberg de Cavalo de Guerra. Não faz idéia
de que uma criança deve ser antes de tudo um anjo exterminador,
um ser que cobra pedágio pelo tempo que passou:
se bate à porta dos pais, é para massacrá-los
e tomar-lhes o trono, jamais festejá-los ou lamber-lhes
as botas. Mimetismo necrófilo, para o qual o passado é
objeto de culto (digamos tudo: punheta), jamais experiência
presente.
Um
parênteses: O que Méliès nos apresentava era
uma verdadeira performance mediúnica, não muito
distinta do fenômeno das mesas falantes e das encenações
privadas de Helena Blavatsky; performance que explorava a fundo
as potencialidades espectrais de uma arte votada a retratar presenças
infiltradas de ausência (o fora de quadro, o fora de campo);
a dialética onto-fenomenológica entre aparição
e desaparição é fundamental na compreensão
de seu cinema, assim como das propriedades demiúrgicas
do cinema em geral. Num século 19 positivista e utilitarista,
que assiste à plenitude de um processo de desencantamento
(reificação) do mundo, sua arte representa uma aposta
radical no invisível – no imaginário, na crença,
na fascinação. Éramos inocentes, tudo fazia
sentido. Acreditávamos que seríamos salvos, que
o palco (a cena) era o mundo, que seríamos eternos (a Primeira
Guerra era apenas a fímbria da réstia de um pesadelo
de cão). Que o mundo era o palco – Méliès
inverte a equação, que Lumière mantém
intacta: em seu cinema, o palco vira o mundo.
A féerie é uma arte
de prestidigitação: por ela, somos levados a nos
dar conta que em cinema nunca se deram presenças absolutas
– sempre fica sobrando algo de fora, e esta dobra ou sobra
é essencial à apreensão do que se mostra
(e cabe no plano). O truque mélièriano
é a quintessência desta intuição fantasmagórica,
deste “entre dois abismos” sem o qual um plano de
cinema inexiste. Ou, como disse Paul Virilio: “O que a ciência
intenta atualizar, o ‘não visto dos instantes perdidos’,
se converte para Méliès na própria base da
produção da aparência, de sua invenção.
O que ele mostra da realidade é aquilo que reage
constantemente frente às ausências da realidade que
passou. É o "entre dois" das ausências
o que torna visível estas formas que Méliès
qualifica como ‘impossíveis, sobrenaturais, maravilhosas’.
Mas os desenhos animados de Emile Cohl, por exemplo, baseados
na transformação, nos mostram ainda mais claramente
até que ponto estamos ávidos por perceber formas
maleáveis, por introduzir uma perpétua anamorfose
na metamorfose cinematográfica".
Mesmo no classicismo (aliás, infiltrado
de ovnis por todos os lados), o mundo nunca se deu (se mostrou)
totalmente. O classicismo era antes de tudo uma crença
no absoluto do dar-se (do mostrar-se) do mundo. Mas também
para os clássicos existia o fora de quadro e do campo,
o contexto e a coxia. Daí a desconfiança dos materialistas
(vide a extraordinária entrevista dos Cahiers com Eric
Rohmer em 70) para com os clássicos. Estes, parecia-lhes,
queriam elidir o caráter social de produção
da arte – dar a impressão de que arte e mundo, representação
e presença, eram um só. O classicismo era
affaire de crença, como dito acima, não
de mediação (inverto agora eu: trabalho). Se a arte
de Méliès torna visível para nós que
o fora de quadro e de campo são essenciais ao cinema
é porque se passaram 100 anos desde então. O que
é visível para nós era inacessível
a Méliès. Para Méliès, Méliés
foi apenas um truqueiro, uma atração de feira, alguém
que descobriu um truque novo. É para nós que ele
é um cineasta que inspirou longo caminho de reinvenção
(correção?) do classicismo (o mundo no plano) pela
sessão mediúnica, a féerie popular do Théatre
de l’ópera, os truques de Houdine. É para
nós que ele se mostra como o sujeito que desfez o cubo
cenográfico e revelou (des-velou) a quarta parede. Para
ele, elas permaneceram onde sempre estiveram: começando
na coxia e terminando no proscênio. Fechadinhas.
O
problema de Scorsese é que ele faz-se passar por um contemporâneo
de Méliès. Por um inocente. Ok, a crítica
“especializada” parece já ter sacado da cartola
a “diferença” que atesta em Hugo uma
espécie de arrière pensée (de intenção
calculada) sem a qual a arte contemporânea não pode
passar: “ah, mas Hugo é Disney ‘sobre preservação
de arquivos’! É Disney ‘passados 60 anos desde
Pinnochio’”. Filme de crianças para adultos.
Mas o campo e contracampo ingênuo e “encantado”
com que Scorsese nos mostra Hugo e sua amiguinha numa sessão
opiácia do Safety Last de Harold Lloyd desmascara
a “ruse”: é debitário da concepção
de cinefilia mais copa e cozinha imaginável, quase trash;
aquela que cultua a sala de cinema como parque de diversões
e sauna gay (afinal, o que se dá ali?), como espaço
uterino – logo, infenso à Linguagem e à Morte
– , para aquém do Mundo e do Simbólico, esfera
inacessível e amniótica reservada a seres ungidos
pelo sacrossanto namorinho de portão (ou coisa pior) com
a Arte.
No cinema contemporâneo, houve uma experiência
de “acerto de contas” com os pais – com os clássicos
– que me parece paradigmática: os maneiristas. Argento,
Vecchiali (parte da obra ao menos), Arrieta, De Palma. Os maneiristas
não entretêm com a história do cinema uma relação
de culto (de reverência e lamber de botas, como aqui; festejo
sirigaito e punheta, como aqui). Eles matam os pais e tomam
seu lugar; eles os relêem criticamente, comme il fault.
No découpage acelerado e no zoom dos últimos
Fassbinder (Veronika Voss e Lola sobretudo), no
raccord do eixo da câmera e no zoom em Argento,
na reencenação em papel jornal e lantejoula de Anger
e Arrieta do star system Hollywoodiano (mediados por Cocteau).
Estes tropos – estas figuras de estilo, acerbas e punks –
são os estigmas do negativo em suas obras. No lugar do Pai
morto, ficou uma cratera e uma ferida (narcísica); na ausência
da Lei e da Linguagem, uma imagem; mas rasurada – a dentadas.
Não há Ano Bom sem o luto pelo ano morto e enterrado.
Um grande artista é antes de tudo um terno parricida.
Março de 2012
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