Como Você Sabe (How Do You Know),
de James L. Brooks (EUA, 2011)
por Fábio Andrade
Politicamente
clássico narrativo
Em época em que o histrionismo contamina até mesmo
os mais dedicados trabalhos de contenção no cinema,
não é surpreendente que um diretor como James L.
Brooks siga com uma carreira que passa longe dos focos de atenção.
Pois com a exceção de outros sobreviventes (feridos
ou não), como Rob Reiner, ou filmes pontuais de estranha
vocação anacrônica - como Eu, Meu Irmão
e Nossa Namorada, de Peter Hedges - James L. Brooks é
um dos últimos bastiões de um cinema que lida de
fato com uma tradição do clássico narrativo
em Hollywood. Nos filmes de James L. Brooks, esse ensejo não
vem contaminado pela propensão metalinguística do
trabalho recente de Nora Ephron, a inflamação personalista
de Woody Allen, a oxigenação do gênero que
aparece em diretores tão distintos quanto Judd Apatow e
James Gray, ou mesmo a releitura barroca do clássico narrativo,
seja pelo fetiche cinematográfico (Tarantino), pela ironia
blasé (Scorsese em Ilha do Medo e Coppola
em Tetro) ou pela pulsão bruta do espetáculo
(Spielberg e Tony Scott). Não é, tampouco, um retorno
ao clássico narrativo da década de 1940, como faz
Eastwood, mas sim a conservação do que era feito
- inclusive pelo próprio Brooks - na década de 1980,
como prole yuppie da Nova Hollywood. Exatamente como
em Melhor é Impossível e Espanglês,
James L. Brooks segue fazendo filmes centrados em uma timidíssima
pretensão: contar uma história com imagens.
É natural, porém, que tal pretensão não
sobreviva imune aos efeitos do tempo, e os primeiros minutos de
Como Você Sabe deixam isso bem claro. Temos Reese
Whiterspoon fazendo o papel de uma heroína afável,
Owen Wilson fazendo um suposto canalha que é tão
afável quanto, e Paul Rudd em momento bastante especial.
Mas, por mais que seu tom de conto de fadas seja sedutor e os
atores consigam nossa adesão sem nunca perder a dignidade,
há minutos bastante pesados até se chegar ao feelgood
tão indispensável às comédias românticas.
E mesmo quando já estamos lá, é preciso ainda
lidar com uma ponta de aborrecimento que o filme parece disposto
a arrastar até o final: uma vez que já sabemos quem
é o mocinho e quem é a mocinha, quanto tempo levará
para que eles fiquem juntos? Como restabelecer o pacto tão
necessário ao clássico narrativo com um espectador
hoje já tão cínico e disperso, tão
pouco propenso a se concentrar em qualquer coisa que não
grite à sua frente?
A
resposta vem em uma cena chave do filme. Quando Paul Rudd e Reese
Whiterspoon se deparam com a atmosfera crescente de um clímax
romântico em um ponto de ônibus, a cena é bruscamente
interrompida pela chegada precoce do ônibus. Eles se despedem
com correção, ela embarca com resignação
e o vê pela janela, se debatendo com a própria má
sorte. É neste momento, diante da ruptura brusca da perfeição
do momento clássico narrativo por excelência (aqueles
que, quando vivemos, tão frequentemente dizemos parecer
coisa de cinema) que a heroína toma uma iniciativa que
parece sintetizar com precisão o valor de Como Você
Sabe: ela faz sinal e desce do ônibus.
Se há, portanto, alguma possibilidade de sobrevivência
do clássico narrativo no mundo hoje, ela está justamente
na eloquência do gesto de quem compreende que a perfeição
da construção cinematográfica é, antes
de mais nada, uma questão de fé. A ruptura do clímax
romântico não é aceitável por meros
acasos contingentes; ela precisa ser cultivada, buscada de forma
voluntária e íntegra; ela é questão
de atitude. Há algo de político neste gesto ativo
de felicidade, e ele não é em nada diferente dessa
obstinação de James L. Brooks em manter seu cinema
livre de afetações ou esforços de estilo
em um momento onde mesmo o clássico narrativo usa de toda
sorte de artifícios para buscar novo fôlego. Em Como
Você Sabe, o diretor segue em sua dedicação
exclusiva à costura transparente de uma irrealidade aberrante
que o filme propõe com serenidade, na montagem paralela
que encaixa todas as peças com a inevitabilidade do final
feliz. Nesta época tão marcada pelos efeitos de
décadas comprometidas com a quebra de qualquer ingenuidade
do espectador, a entrega voluntária a uma experiência
plena – mesma que interrompida pelas contingências
do azar, esse desvio onisciente da ironia – e ao cultivo
de um momento que o cinema raramente parece ainda capaz de comportar
é de uma entrega bastante incomum.
Em
Carta a D'Alembert, Rousseau interditava o teatro temendo
pelos pobres homens que, após passarem horas fantasiando
com as mulheres idealizadas pelos autores, fossem condenados à
frustração de não as encontrarem no mundo real.
O mesmo discurso está presente em um dos bastiões,
para o bem e para o mal, da comédia romântica moderna:
Alta Fidelidade, o romance de Nick Hornby, trocando o teatro
pela música pop. Mas James L. Brooks sabe que não
é possível assumir que, após Debord, Godard
e cia, o homem contemporâneo se pareça tanto assim
com os relojoeiros de Genebra no século XVIII - não
é à toa que o protagonista de Paul Rudd seja culpado
justamente por sua ignorância, por sua obstinação
em não saber, verbo que o filme traz no título.
O que faz de Como Você Sabe um filme raro no cinema
atual é essa atitude à Murnau, no antológico
intertítulo de A Última Gargalhada, de compreender
o gesto clássico narrativo como uma profissão de fé,
como um compromisso autônomo e voluntário possível
no mundo moderno. É a percepção de que interessa
menos a mulher idealizada, a relação idealizada, e
mais a entrega abnegada e inadiável de se estar sempre à
busca da realização do ideal. E de que, na eloquência
deste gesto, há algo de francamente admirável.
Maio de 2011
editoria@revistacinetica.com.br |