Hotxuá, de Leticia Sabatella e Gringo Cardia (Brasil, 2009)
por Rodrigo de Oliveira

Tradições em contato

Com um pouco de pesquisa, e outro tanto de sorte, Hotxuá parte de uma plataforma freqüente dentro do escopo do tipo de filme sobre comunidades indígenas: um traço global, comum a todas elas (e aqui ouviremos as narrativas esperadas sobre seus personagens lendários, seus mitos fundadores, sua prática coletiva, seus receios da ameaça branca), e outro traço particularizante, que singulariza aquela tribo e seus métodos específicos, a partir do qual o filme poderá articular algum discurso da diferença. O caso dos Krahô é especialmente encantador, e Hotxuá vai se tornando ele próprio encantador quanto mais se aproxima daquilo que Letícia Sabatella e Gringo Cardia descobriram de único no interior do Tocantins.

Logo na primeira seqüência do filme, observamos um ritual da tribo que é ao mesmo tempo reiterativo e um tanto estranho. A lógica do funcionamento daquela encenação se revela: não se trata propriamente de um ritual, mas de puro teatro onde, travestido, um índio se esfrega em seus companheiros, faz estripulias com as crianças, desfila todo rebolativo num arremedo de vestido, até que finalmente “engravide” e, de barriga falsa, dê a luz a um dos meninos que até ali se divertia com o pequeno número cômico. É este índio o hotxuá, figura central no funcionamento da tribo, um “sacerdote do riso” cuja função dentro do grupo é a de um clown permanente, destinado a fazer da graça o ponto de equilíbrio daquela comunidade. A seqüência das atuações deste hotxuá é quase exasperante. Não há um momento em que ele não apareça em cena sem aprontar algum tipo de artimanha com quem quer que esteja a seu lado, e a reação é invariavelmente a gargalhada geral. Neste sentido, Hotxuá mistura o encanto natural causado pela plástica pura da língua indígena (muitas vezes legendada, embolada entre o português e o krahô, mas também apenas som e melodia dissonante quando um pajé estende um canto tradicional por diversas cenas do filme) com um ruído que é tão presente na experiência social daquelas pessoas quanto a risada – é um traço de proximidade, antes de tudo, é na risada que a natureza daqueles índios e daquela gente que os foi filmar encontra um ponto comum.

Mas talvez existam outros, e é esse o barato: qual é, afinal de contas, a matriz daquele humor que o hotxuá exerce com tanta desfaçatez? Ainda que alguns dos índios falem português claro e que o contato com o branco seja um dado para a maneira como aquela comunidade se organiza hoje, não vemos em cena nenhuma televisão, nenhum indício da tradição visual branca (muito mal veremos roupas ocidentais vestindo alguns poucos deles). E ainda assim, há no repertório do hotxuá uma verve de humor físico, escrachado, “Monty Python encontra Os Trapalhões”, cheio das insinuações homoeróticas e do colocar-se no papel do outro (imita mulheres e crianças com total propriedade) que nos faz pensar em que outros movimentos e em que outros corpos cômicos anteriores e exteriores à tribo aquela performance pode ter sido inspirada. É uma cultura milenar, o sacerdote do riso é uma figura de séculos de história, e nem a presença de uma peruca metálica típica do nosso carnaval pode nos dar alguma certeza sobre esta matriz. Ela bem pode estar puramente baseada nas próprias crenças dos Krahô, e para isso Hotxuá nos apresenta alguns depoimentos que dão conta da dimensão sensível do contato que estes índios têm com a natureza. “Nós acredita nas planta”, diz com convicção firme um dos índios mais jovens, e em diversas ocasiões ouviremos histórias sobre como árvores, plantas e legumes ganhavam vida em certas noites e dançavam em grandes rodas, executando seus próprios números artísticos e cômicos. Mas os legumes, lembra este mesmo jovem índio, só conversam atualmente com os pajés, e não mais com “a gente comum, qualquer um”. Se há uma tradição do humor físico e do movimento sendo mantida, é bem capaz que seja a estes legumes que o hotxuá deva seu talento.

Talvez o movimento mais importante da parte de Letícia e Gringo seja o de nunca se esconder das matrizes de registro da qual seu próprio discurso está carregado. Ela pode servir muito bem quando a câmera no ombro de Sylvestre Campe persegue com a velocidade de um thriller o índio hotxuá mata adentro, “vestindo” a carcaça de um boi morto; ou então quando abusa da pompa para registrar um ritual esportivo da tribo, preenchendo-o de gruas e planos titubeantes e descolados daquele universo que o filme parecia tão bem compreender. No fim, se mesmo esta agenda estética anuncia a exterioridade do registro, será no interior da cena, numa ousadia que faria corar os puristas do contato etnográfico, que Hotxuá mostra em que pé quer dialogar com estas tradições que não lhe pertencem. De repente, vemos um palhaço nosso, clássico de cara branca, nariz vermelho e sapatos desproporcionais, chegar à tribo como se andasse vagando por ali “sem querer”. Esse encontro de duas expressões da alegria encarnada, um palhaço ocidental e o palhaço hotxuá, forçado pela direção de Letícia e Gringo, preenche o filme de uma energia nova.

Se antes as risadas se espalhavam pelo filme num registro naturalista, servindo como uma grande colcha climática que desse conta do espírito da tribo, com a presença em cena destas duas fontes tão distantes e ao mesmo tão complementares de humor, agora a edição de som trabalhará no limite do absurdo. Montando risada sobre risada, o que se ouve é a exacerbação deslocada, como se estivéssemos num auditório de tevê e houvesse ali uma claque programada para despejar aquele barulho sobre a cena. É isso, no fundo, aquilo com que Hotxuá nunca se negou a confrontar: o interesse por uma tribo de comediantes surge não apenas pelo que ela tem de particularizante e exótico, mas, pelo contrário, surge ali num ponto em que realizadores e personagens compartilham as mesmas sensações, as mesmas crenças, e eventualmente até o mesmo nariz de palhaço.

Janeiro de 2009

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