Hotel
Atlântico, de Suzana Amaral (Brasil,
2009) por Eduardo Valente Verdade
da/na cena
Hotel Atlântico
começa com Julio Andrade passeando por uma cidade vazia (não identificada, e embora
possamos supor ser Santos, logo ele sairá na rodoviária de São Paulo, numa deslocalização
que serve muito ao filme). Vemos ali ecos tanto de um certo cinema da distopia,
este das metrópoles esvaziadas por onde caminham personagens-fantasma, quanto
inevitavelmente vem à mente o personagem que trouxe o ator para a cena nacional
do cinema, o de protagonista de Cão Sem Dono, em desacordo com o mundo
à sua volta e em dificuldades totais de relação com a realidade comezinha. O sentimento
de dejà vu aumenta um pouco quando o personagem entra num quarto de hotel
e, numa explosão em frente a um espelho, nos remete ainda mais à revolta do personagem
anterior do ator. É um começo de filme que parece esquadrinhar um trajeto esperado
e sem surpresas não só para o personagem como para a própria lógica de construção
do filme. Nada mais falso, pois assim como logo os dois (personagem e filme) deixam
para trás o local que dá título ao filme, ambos também o farão com estas idéias
que poderiam afogá-lo em significados anteriormente construídos. Não que Hotel
Atlântico não mantenha uma série de relações com obras e autores vários (Antonioni
vem à cabeça aqui, David Lynch acolá, ecos – distantes – do realismo mágico são
sentidos logo adiante). Mas é a maneira efetivamente única e particular com que
lida com estas matrizes que o tornam experiência realmente fascinante.
É
fato que há algo que aproxima o filme com o de Beto Brant que tinha Julio Andrade
como protagonista e motor principal de todas as suas cenas – como aqui também
é o caso. Mas isso não se deve em nada, como podia fazer supor o começo acima
citado, a um estado de espírito do personagem e sua construção (pois lá era essencial
a dimensão do entorno direto do personagem – sua família, seu espaço, suas relações
pessoais e história, todos elementos absolutamente negados no filme de Suzana
Amaral), mas sim a uma forma de pensar a potência cinematográfica de sua narrativa
a partir da força intrínseca a cada uma das suas cenas, independente de todas
as outras. Mas, claro que uma seqüência de cenas fortes acaba construindo algo
pelo seu acúmulo, e é por isso que, mesmo absoluta e essencialmente (pois é algo
que está em sua essência) episódico, Hotel Atlântico nunca tem o sentimento
de irregularidade que marca vários filmes com esta característica (como não tinha,
também, Cão Sem Dono). Isso porque há algo que une de fato todas as partes
do filme, e isso é menos o corpo de Julio Andrade e sua presença, e muito mais
um sentimento de mundo que a diretora consegue impor ao material. Corpo
e sentimento de mundo são expressões importantes para entender o que Hotel
Atlântico tem de mais forte, porque é sempre a partir do primeiro que o segundo
se impõe. Se isso é algo radicalizado na parte final da narrativa, onde uma amputação
força toda uma reviravolta não só na trama (se é que podemos chamar assim) como
na relação do personagem com o mundo, já estava presente desde as primeiras interações
do filme, onde a iminência e o risco da morte surgem como elementos de cada parada
no trajeto do personagem, de uma fisicalidade total. Interação, aliás, é termo
que entra como uma terceira expressão essencial à fruição do trabalho. Pois se
enquanto Julio Andrade está sozinho em cena, no começo, não conseguimos distinguir
os interesses e particularidades de Hotel Atlântico, é a partir de sua
primeira interação com uma outra personagem que percebemos sua dinâmica e lógica.
Quando o motorista de táxi o leva pra rodoviária e fala do “frio das estepes russas”
(e não por acaso o personagem de Andrade pergunta o que ele havia dito), começamos
a sorver este interesse pela troca, que se torna pregnante pela estranheza e que
cria, com muito pouco, uma relação entre duas (ou mais) pessoas que sempre nos
fascina. Logo
depois, por exemplo, é o que vai acontecer com a jovem polonesa no ônibus: com
pouquíssimos diálogos, sentimos uma empatia enorme pela personagem e pela sua
troca com Andrade que, tal e qual a página em branco que é em cena, parece capaz
de se fascinar e interessar por cada uma destas trocas. E a partir daí será esta
dinâmica da troca que fascina personagem e espectador a que move sempre o filme
adiante, de encontro em encontro. E aí é preciso que se louve o trabalho magistral
de direção de atores de Suzana Amaral, que consegue fazer com que poucas cenas
nos bastem para acreditar na verdade (e não na verossimilhança) destes personagens,
o que abre espaço tanto para performances de nomes/rostos conhecidos (Gero Camilo,
João Miguel, Mariana Ximenes), cuja presença em cena nunca se torna incômoda justamente
por este “estado de teatro” que domina a cena o tempo todo; quanto a rostos/corpos
desconhecidos do cinema, como o da mulher do sacristão ou o agroboy, que
se tornam logo personagens igualmente fortes e firmes em cena através de admiráveis
detalhes de construção. Mas há muito mais em cena além de
grandes atores, porque, assim como já acontecia em seu anterior Uma Vida em
Segredo, se há algo que tem caracterizado o cinema de Suzana Amaral é um domínio,
nada comum no cinema brasileiro, da mise-en-scène em todos os seus aspectos
– principalmente da relação da câmera com os espaços. E aí é preciso se falar
do primoroso trabalho na fotografia de José Roberto Eliezer, que consegue dar
a cada ator seu espaço e seu peso pela maneira como combina o esquadrinhamento
dos espaços pela câmera com uma iluminação que, nunca auto-centrada, possui uma
elegância e uma justeza notáveis. É através dele (mas também do som do filme)
que Suzana Amaral se afirma como uma diretora de cinema, cujos olhos são atentos
aos elementos de linguagem tanto quanto ao que está sendo posto em cena. Talvez,
em meio a um filme tão particular quanto este, seja este o principal elemento
que o torne distinto, e tão agradável surpresa a olhos e ouvidos: sua verdade
extremamente firme e tão bem construída, passo a passo. Setembro
de 2009 editoria@revistacinetica.com.br
|