O Albergue (Hostel),
de Eli Roth (EUA, 2005)
por Fernando Veríssimo

Invasão de intimidade

Não é de espantar que O Albergue, filme cuja ambição confessa é a de provocar náusea e repulsa nos espectadores, tenha, por um lado, provocado o desprezo de muitos, e, por outro, despertado a curiosidade e admiração de um público fiel ao seu gênero – ainda que só em breve, com o lançamento em DVD, os adolescentes banidos das salas pela classificação 18 anos possam curtir os estranhos prazeres que o filme tem a oferecer. Em recente visita ao Brasil, o jovem diretor Eli Roth chegou a professar seu orgulho pela façanha de ter redecorado alguns lobbies de cinemas e corredores de shopping centers com o vômito arrancado dos estômagos fracos dos mais incautos, enquanto provavelmente colhia material para uma próxima incursão no horror ambientado em países exóticos, onde retalhar pessoas com motosserras é de praxe, divertissement da elite.

O rapaz e seu filme foram achincalhados com vigor cá e lá, acusados de elogio da boçalidade (no mínimo) ou de irresponsáveis – moral quando não politicamente. Acusações velhas ao cinema da cepa exploitation, ingênuas na suposta defesa de um "humano", alimentam as reações histéricas, que se devem a um ou dois temas desenvolvidos pelo filme: exibição gráfica de sessões de tortura como elementos cênicos e dramáticos, e, mais que isso, o velho expediente de provocar identificação do espectador com a dor da vítima e com a crueldade do carrasco ao mesmo tempo.

É mais que evidente que o apelo de O Albergue ao imaginário alimentado pelo noticiário contemporâneo, despertado pelo escândalo de Abu Ghraib, fez a bandeira subir aqui e ali – mas as acusações que recaíram sobre o filme e seu diretor passaram longe do alvo. Como é possível acusá-los de irresponsáveis se atestamos, logo de saída, que esta "irresponsabilidade" é o próprio ponto de partida deles? Pois que a operação de provocar a identificação do espectador com exercícios de sadismo, mesmo que já tenha ganho o status de estratégia clássica deste tipo de cinema, ainda é tabu.

Ora, O Albergue – tal como Cabana do Inferno, filme anterior do diretor – é dessa onda de projetos apadrinhados por Quentin Tarantino que arremessa sem o menor pudor toda sorte de referências em seu caldeirão, temperando o grosso caldo com aparições de ícones de um novo cinema da crueldade (Takashi Miike aqui), remissões a um cinema de repertório famoso pela brutalidade e crueza exibidas sem concessões, e (por que não?) episódios de horror real – televisionados ou não. Este aqui nem sequer exibe maior destreza na realização, e depende excessivamente do fator "choque", que não chega a realizar a contento.

Porém, indo um pouco mais além, não é dessa identificação dupla, desse ritual milenar de reconhecer os impulsos e desejos mais sombrios, que trata o mito do labirinto, que O Albergue tem a pretensão de atualizar?

Ao conduzir seus protagonistas norte-americanos para o leste europeu contemporâneo, cenário assolado pela corrupção generalizada e descrença absoluta no Estado – uma legítima terra de ninguém onde uma das mais selvagens encarnações do capitalismo se instalou com resultados terríveis depois da derrocada do comunismo –, Roth parece reivindicar uma leitura política que seu filme vai recusar logo em seguida, para se ater num confuso e intrincado jogo de signos que parece deliberadamente desenvolvido para desnortear. Do cenário, Roth aproveita todos os clichês possíveis: o histórico – terra de paganismo, barbárie e superstições –, e o contemporâneo – paisagem industrial em ruínas, turismo sexual, legiões de mendigos ameaçadores, etc. Que os exteriores rodados nos becos mais escuros de Praga passem, na tela, por Bratislava, não é irrelevante (especialmente para os tchecos e os eslovacos, imagino!).

Mas a saga de auto-descoberta, de enfrentar os demônios, não se resolve a contento, senão numa solução pobre que ilustra de forma didática o jogo de espelhos do mito. Estamos longe das fontes reverenciadas, ficções de horror que também trabalham o mito do labirinto: a provocadora fusão de Freud, McLuhan e história americana que Kubrick lança mão para narrar o grotesco fim de Jack Torrance em O Iluminado; ou a deslumbrante denúncia do puritanismo realizada por Anthony Shaffer, Robin Hardy e Christopher Lee em O Homem de Palha. Acontece que, se a tese aparentemente defendida por O Albergue não ultrapassa o óbvio, o filme exibe uma imensa energia e uma tremenda confiança nos detalhes, nos seus elaborados set-ups e em seu tratamento "irresponsável", sensacionalista, das sessões de tortura.

O Albergue se perde, à vontade, em um milhão de caminhos, sem avançar nas diversas tentativas de alegoria política, filme de horror adolescente, comédia negra, cautionary tale: partindo o Fio de Ariadne em várias pontas soltas, ele propõe que nos entreguemos às armadilhas, que nos percamos em alguma esquina mais sombria da experiência contemporânea.

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