Um Homem de Moral, de Ricardo Dias (Brasil, 2009)
por Cléber Eduardo

O valor da modéstia e da discrição

A primeira exibição de Um Homem de Moral, de Ricardo Dias, no Cine PE, foi marcada por calorosos aplausos. Durante e ao final. É preciso entender esses aplausos. Eles não parecem dirigidos ao filme ou aos méritos de sua realização, em si mesmos, mas ao espaço de veiculação para uma prova de talento criador: o de Paulo Vanzolini. Não apenas um talento de criação musical, talento esse expresso em momentos nos quais canta sem instrumentos e em momentos de gravação de um disco em sua homenagem, mas também um talento narrativo, que, com seu jeito entre o envergonhado, o respeitoso e o alérgico a performances, constrói um tom em sua relação com o mundo. Um tom sério e singelo ao mesmo tempo, de respeito e secura, que admira as habilidades alheias e, em relação às suas, prefere alguma zona de discrição. Vanzolini é um poeta do samba para dentro, não tanto um poeta de dentro do samba, e a externalização desse “para dentro” em Um Homem de Moral, talvez, seja a razão sensível dos aplausos dirigidos ao filme. Aplaude-se um olhar de Vanzolini viabilizado por um olhar para Vanzolini: o olhar de Ricardo Dias.

Esse tom para dentro do sambista da ciência, que vê poesia em plantas e animais tanto quanto em palavras musicadas, é o tom empregado por Ricardo Dias. Que os sedentos por novidades e jogos estéticos não se iludam. Os primeiros minutos de Um Homem de Moral, por apresentar um pouco de seu método (entrevistas/depoimentos de Vanzolini, imagem de show em sua homenagem, gravação de um disco também de homenagem e memórias de amigos-parceiros, tudo intercalado com imagens de São Paulo), podem parecer um atentado de classicismo educativo contra uma noção em voga de documentário contemporâneo que, por mais diversa que possa aparentar, passa longe do modelo sem ousadias evidentes de Um Homem de Moral. Há um tom formal, uma distância quase fria, um jeitão quadrado que, nesses minutos iniciais, parecem domesticar seu “personagem”.

O diretor emprega a primeira pessoa na narração para assumir seus laços com Vanzolini. Há afetos envolvidos de antemão, não afetos construídos na realização. Estamos em um documentário de confirmação, acima de tudo, e não em um documentário de descobertas. Os acasos e acidentes, aqui, estão sob controle. Podem surgir, mas não são pressupostos, menos ainda provocados. É preciso conter a ansiedade para aos poucos perceber como essa frieza e esse cálculo são, na verdade, respeito; como essa formalidade é a própria maneira de olhar as coisas com uma afetividade sem festas e com uma distância carinhosa; como esse olhar sem sede de invenções coloca-se como um meio e não como uma finalidade. Há uma generosidade educada e sem auto-propaganda em Um Homem de Moral, que é a generosidade de conter a expressividade cinematográfica em nome da expressão dos artistas em quadro.

Não se pode afirmar agora, sem uma revisão fora de festivais, o que tal proposta representa, em 2009, para o documentário brasileiro. Nem em como lida com esse universo de “retratos” amplificados ou concentrados de artistas da música brasileira, que já rendeu narrativas sobre e com Nelson Freire, Paulinho da Viola, Cartola, Wilson Simonal, Arnaldo Batista, Titãs, Humberto Teixeira. O mais importante a ressaltar aqui é essa espécie de pudor documental, que procura lidar com senso de preservação em sua intimidade com o personagem, sem nunca ir muito adiante nos limites de sua vida pessoal, sem nunca abordá-lo, na ausência, fora do espaço público (show, gravação), sempre atrás de um gesto de admiração – de outros em relação a Vanzolini ou de Vanzolini em relação aos outros. Nessas demonstrações um pouco tímidas de afeto, mas sinceras em sua discrição de tom, quase intimistas, quase balbuciadas, é que está o encanto de Um Homem de Moral. Um documentário às vezes um pouco antigo, sim, mas porque antigos são os valores dele. Porque há um senso em sua forma e em suas imagens de preservação de certos modos, de certos comportamentos e de certos procedimentos, sem tantos chamarizes. O seu lugar hoje precisa ser pensado a partir daí, não dentro de uma perspectiva evolutiva, que encerra certas formas em mausoléus da estética.

Maio de 2009

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