Ventura, Vitalina e Portugal entre a luz e a escuridão

janeiro 25, 2016 em Em Pauta, Marcelo Miranda

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por Marcelo Miranda

“Se não há fogo em um plano, se não há nada ardendo em seu plano, então ele é inútil. Em algum lugar do plano, algo deve estar em chamas”.

Jean-Marie Straub, citado por Pedro Costa

Existe uma contradição fascinante na epígrafe acima em relação ao que estamos aqui tateando a partir do filme mais recente de Pedro Costa. Se o fogo é constituído, em seu cromatismo, de amarelo e azul, serão o branco e o negro encontrados em Cavalo Dinheiro, ou mais especificamente o claro e o escuro. João Bénard da Costa já havia exposto, num texto muito forte, as relações dos dois extremos cromáticos no trabalho do diretor. Ao apontar que “não há um só plano na obra de Pedro Costa em que as chamadas ‘cores vivas’ (as ‘cores acidentais’ de Buffon) sejam dominantes”, Bénard diferenciava as noções de “negro” e “preto” (absolutamente sinônimos em Portugal, o que não exatamente se aplica ao Brasil) do que seria “escuro” e em que medida este último era a chave de apreensão para os primeiros trabalhos do cineasta, como O Sangue (1989), Casa de Lava (1994) e Ossos (1997): “O escuro não é uma cor, mas é a origem das cores, como é também a origem do visível. Como dizia Goethe: ‘O olhar não vê forma nenhuma. São o claro, o escuro e a cor conjugados que fazem com que o olhar distinga um objeto do outro. A realidade é concebida ao mesmo tempo que o olhar’”.

Seguindo por uma trajetória que parecia sempre acrescentar e fazer crescer o que havia sido visto nos filmes anteriores (o caminho entre Casa de Lava e Juventude em Marcha, de 2006, é especialmente desconcertante), Pedro Costa coloca em Cavalo Dinheiro matizes ainda mais complexas e enigmáticas, fruto de um investimento na dramaturgia tão intenso quanto inapreensível de imediato. No mesmo artigo de Bénard aqui citado, ele descreve Ossos com palavras que se aplicam perfeitamente a Cavalo Dinheiro (ao qual, aliás, o falecido crítico e programador português não pôde assistir): “É um filme de corpos vivos atravessado pela morte ou por aquilo que na morte implica o desaparecimento dos corpos. É um filme de ‘mutantes’, no mais radical sentido da palavra, pois que todos uns nos outros se mudam”.

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A mutação apontada por João Bénard da Costa pode ser percebida nas relações entre luzes e sombras no filme. O diretor jamais negou influências do cinema americano clássico nem da cinematografia alemã dos anos 1920 e 1930, mas, em geral, essas relações tentem a ser apontadas mais como fetiche por parte de alguns críticos do que se fazem necessariamente pregnantes na tessitura daquilo que se vê e ouve nos filmes. Se similaridades inesperadas com John Ford, Jacques Torneur, Fritz Lang, Carl Dreyer e F. W. Murnau podiam ser apontadas anteriormente (o próprio Costa já disse que Juventude em Marcha poderia ser visto como releitura de Audazes e Malditos, filme de Ford de 1960), elas estavam no uso dos espaços, na interação dos corpos, nos enquadramentos e na atenção a uma construção visual muito fixada no uso do escuro (mais até que a luz). Mas nunca isso se deu por mera semelhança, e sim por reinvenção: o cinema de Pedro Costa não se apropria de determinadas características do passado para piscar a elas, e sim reinventa o uso de alguns recursos de forma a dar a ver outras expressividades, outras poéticas, outros pontos de contato. A luz, em Costa, está sempre rarefeita, num processo de angústia constante, nunca segura de sua própria existência, como se a ela só fossem permitidos alguns segundos de tela, para pouco depois o personagem iluminado se desviar e voltar à escuridão de onde ele já tinha vindo. O crítico Adrian Martin certa vez relembrou algo que Jacques Rivette elogiava em Carl Dreyer e que serviria aos filmes de Costa: em cena, estão “corpos que ‘desaparecem’ no corte, que vivem e morrem de plano para plano, prosseguindo uma estranha semivida nos interstícios das bobinas, das sequências, dos planos e até dos fotogramas”. A aparição e desaparição dos corpos em Cavalo Dinheiro – para além das rememorações do trauma, da violência da história de Portugal para com os imigrantes de Cabo Verde, dos fantasmas a assombrar a mente de quem ainda vive e de quem já morreu – se deve essencialmente à presença ou ausência da luz.

Ventura, este espectro já visto a circular fantasmaticamente em outros filmes de Costa, como Juventude em Marcha e o curta O Nosso Homem (2010), é o andarilho de luz e sombras a perscrutar os espaços concretos e abstratos de Cavalo Dinheiro. No início, vemos-lhe de costas, sem roupas, a descer uma escadaria, onde ao final ele atravessa uma grade rumo à escuridão. Em seguida, um corredor pouco iluminado permite ver apenas a silhueta de Ventura, lentamente se aproximando, de frente, olhos inexpressivos a apontar para fora do plano. Ao interromper o movimento, ele ergue as mãos, tapando a luz forte que incide sobre seus olhos. Nestes primeiros instantes, a impressão é de que, a cada saída de quadro de Ventura, a luz vai ser apagada, porque ela só existe para guiar-lhe rumo a seja aonde estiver indo (em geral, a nenhum lugar definido, porque o que caracteriza a jornada de Ventura em Cavalo Dinheiro são as errâncias de memórias estilhaçadas, que podem tanto narrar lembranças quando fabular histórias).

Toda uma outra perspectiva de Cavalo Dinheiro poderia ser estudada a partir das sombras projetadas nas paredes ou a formar contornos atrás de portas fechadas que deixam passar luz – o diretor de fotografia Leonardo Simões é de fato um segundo autor na arquitetura do filme. No essencial livro A Tela Demoníaca (1985), no qual Lotte H. Eisner analisa o cinema alemão nos seus primórdios, a autora identifica na peça O Mendigo, de Reinhardt Sorge e encenada em 1917 por um colaborador de Max Reinhardt, os primórdios do que viria a ser o expressionismo quando levado ao cinema anos depois: “O contraste ou, se podemos dizer, o ‘choque’ de luzes e sombras, a iluminação súbita de uma personagem ou um objeto com o facho do projetor, a fim de concentrar aí a atenção do espectador, e a tendência em deixar neste exato instante todas as outras personagens e objetos mergulhados em trevas indefinidas”. Apesar de negar a Reinhardt qualquer primado sobre o expressionismo (Eisner explica porque é uma confusão histórica a vinculação do diretor teatral, bem mais adepto do impressionismo, a uma estética pela qual ele não tinha apreço), a autora enumera neste trecho o que se pode absorver não apenas de boa parte dos filmes alemães da primeira metade do século XX, mas uma das fontes principais que Cavalo Dinheiro herda e avança.

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Seria simplista falar que o filme de Pedro Costa é “expressionista”. O que interessa, nesta breve reflexão, é trafegar pela pictorialidade de Cavalo Dinheiro a partir da utilização de matizes que o aproximam não só de uma estética, mas também de um sentimento. Se o expressionismo, surgido na pintura, se caracterizava pela exposição na tela dos rasgos afetivos mais íntimos, do sentimento berrante e excessivo, da angústia por um mundo ensanduichado entre guerras, com muita variação de cores e formas, não seria Cavalo Dinheiro uma espécie de anti-expressionismo, na medida em que retira quase todas as cores (o branco das luzes artificiais nem pode ser chamado de “reunião de todas as cores”, justamente por ser apenas uma mecânica de iluminação) e deixa que as sombras e as silhuetas se comuniquem? O filme não tem um único facho de luz vindo da natureza. Não há cenas diurnas (ou ao menos que permita vislumbrar o dia). O vermelho surge como resquício de cor, numa cueca ou num casaco, talvez um resto de sangue ainda a assombrar os personagens.

Cavalo Dinheiro, então, se conecta ao claro-escuro expressionista por outro sentido: sem ser em preto-e-branco (como era, aliás, O Sangue), o filme retira as cores e as regurgita numa distorção das formas. Portas, escadas e janelas parecem estar sempre deslocadas, fora de esquadro em relação ao espaço “natural” e à visão do espectador. Toda a ambiência do filme (o hospital esvaziado, corredores infinitos, escombros de uma comunidade largada à própria sorte, ruas desocupadas, florestas na penumbra) surge tão profundamente artificial, como se fossem cenários construídos para as filmagens, quanto realista; tão prestes a se esfumaçar na passagem entre os planos quanto fincada no mundo para nunca mais sair. “As linhas de fuga do filme explodem em cada imagem, ao mesmo tempo que escavam mais fundo, para levar a cabo um outro tipo de trabalho, diligente, como o de uma térmita” (Adrian Martin, sobre Costa num sentido geral).

A luz, em Cavalo Dinheiro, muitas vezes está representada pela presença de alguma instituição ou autoridade. São enfermeiros que retiram Ventura do escuro, logo no começo, para um quarto de hospital muito iluminado. É também diante de um médico (apenas ouvido no extracampo) é que Ventura aparece iluminado, enquanto responde a perguntas sentado na maca. A mistura de tempos e memórias – com o personagem, doente e envelhecido, dizendo ter 19 anos e 3 meses de idade e localizando seu presente em 11 de março de 1975 (um dia de contra-golpe na política de Portugal) – acontece neste espaço institucionalizado, o qual remete aos sofrimentos do passado, quando trabalhou para poderes estabelecidos em Lisboa e depois foi engolfado pelas consequências da Revolução dos Cravos em 1974. A luz, então, é símbolo de autoridade (autoritarismo?), porque Ventura é um ser das sombras, tal como o conde Orlok de Nosferatu – Uma Sinfonia de Horror (F.W. Murnau, 1922), com quem ele guarda tantas semelhanças (inclusive físicas, nos “dedos tão finos e tão longos”, como observa a personagem Vitalina).

A presença de Vitalina Varela e sua jornada a partir da morte do marido é também seguida pelo jogo de luzes e sombras. Enquanto ela narra, em voz sussurrante, a frustrada tentativa de ir de Cabo Verde para Lisboa enterrar o companheiro, um único feixe de luz permite vislumbrar seu rosto; minutos depois, ela lê certidões de nascimento e de casamento que reconstituem sua vida com o marido, tendo ao fundo um tipo de tela em contraluz que, reenquadrada pela câmera do filme, parece mostrar Vitalina em outro espaço, como a falsear um tempo feliz que ela talvez resgate na leitura dos documentos. Em outra cena, anterior, Vitalina responde a Ventura sobre o que, dele, ficou para trás no país natal e descreve que seu cavalo, Dinheiro, foi “feito em pedaços” pelos abutres. Vem o silêncio, Ventura faz um leve movimento de resignação, e logo a escuridão novamente toma o espaço da tela.

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Em A Tela Demoníaca, Lotte W. Eisner cita uma fala de Goethe sobre a presença de dois focos de luz num quadro de Peter Paul Rubens: “A dupla iluminação é de fato uma violência, e você poderá dizer que contraria a natureza. Mas, se contraria a natureza, acrescento logo que é superior a ela”. Subvertendo o que Goethe buscava exaltar nesta fala, pode-se pensar que a superação da natureza proporcionada pela incidência dos focos de luz em Cavalo Dinheiro se dá num sentido estritamente político, na medida em que se tenta forçar um corpo como o de Ventura a estar onde não mais ele pertence. O mesmo tipo de sensibilidade deve ter movido o diretor a abrir o filme com as fotos em preto-e-branco de Jacob Riis e, na metade, deixar Cavalo Dinheiro ser invadido por uma sequência musical na qual planos em tableaux dos moradores de uma imaginária Fontainhas (bairro retratado em filmes anteriores e agora demolido pelo governo), agora existindo como mito e cancioneiro de quem para lá se dirigiu após a imigração. A luz, nestas imagens, parece se dirigir a pontos específicos do quadro, a permitir chamar atenção a algumas formas ou rostos, a definir à força um “punctum”, deixando que o resto, menos iluminado (mas não menos expressivo), faça a vez de “studium” – segundo noções de Roland Barthes em A Câmara Clara sobre o que representa a emoção da subjetividade em contraponto ao contexto histórico ou cultural presentes na inteireza da imagem fotográfica.

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Toda essa relação da luz com a instituição aparece impregnada de simbolismo e alegoria na cena do elevador, quando Ventura enfrenta seus fantasmas interiores a partir da presença de um militar pintado e quase imóvel. Logo ao entrar no espaço exíguo, Ventura escuta uma voz a implorar que alguém seja levado para a sombra, no que o personagem responde: “Você já está na sombra”. Em vários momentos de reação, Ventura está sob as sombras, rosto escondido da luz, disposto a responder ao que o atormenta. “Você já morreu várias mortes”, diz uma das vozes que impregnam o elevador. Ao ser confrontado mais diretamente, Ventura ergue os braços e protege o rosto, num movimento similar ao visto no começo do filme, porém agora mais cerimonioso, como a negar uma “iluminação” que ele não deseja. Ao combater, pelo corpo combalido e doente, a invasão dessa luz oficialesca, que parece tentar impor a fórceps uma visibilidade artificial, Ventura tem um gesto político de resistência, que o fará sair porta afora do hospital rumo à escuridão que volta a engolfá-lo.

Como escreve Jacques Ranciére, ao analisar a obra de Pedro Costa, “o cinema não pode ser o equivalente da carta de amor ou da música dos pobres. Já não pode ser a arte que restitui simplesmente aos humildes a riqueza sensível do seu mundo. É preciso que se separe, que consinta ser apenas a superfície onde a experiência daqueles que foram relegados para a margem das circulações econômicas e das trajetórias sociais se tenta traduzir por meio de figuras novas. É preciso que esta superfície acolha a cisão que separa o retrato do quadro, a crônica da tragédia, a reciprocidade da fratura”. Em Cavalo Dinheiro, as dicotomias se dão já desde a partir do claro-escuro, sugerindo um mundo cindido no qual a alternância de ponto com luz ou com falta de luz ocupa os planos em harmonia apenas na forma, pois explicitam a desarmonia histórica causadora dos gestos que originam o próprio filme.

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