Uma Rapariga no Verão, de Vítor Gonçalves (Portugal, 1986)

março 1, 2015 em Em Vista, Marcelo Miranda

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Singularidades de uma rapariga no Verão
por Marcelo Miranda

Se for usado como critério algum misterioso exílio como determinante à invisibilidade de um filme marcante sob diversos aspectos e cuja redescoberta só se deu décadas depois de sua realização, o primeiro (e, até meados de 2013, único) longa-metragem do cineasta português Vítor Gonçalves se tornou, no passar dos anos, um tipo de lenda cinéfila tal qual já foram os brasileiros Limite (1931), de Mário Peixoto, e Bang Bang (1971), de Andrea Tonacci: poucas pessoas o viram na época em que circulou e, dos privilegiados, vinha o senso comum de que Uma Rapariga no Verão (1986) era algo próximo a uma obra-prima de raro valor. Sem lançamento comercial nos cinemas após passar pelos festivais de Roterdã e Berlim, o filme entrou num limbo indefinido, do qual foi retirado por ocasionais exibições na TV e na Cinemateca portuguesa, até, enfim, ganhar as salas do país em 2014. Foi uma maneira de resgatar ou tentar compensar o valor do trabalho de Vítor Gonçalves, especialmente pelo caso de o diretor, quase três décadas depois daquela estreia, ter realizado outro longa-metragem, A Vida Invisível – este, afinal, exibido apropriadamente nos cinemas.

Uma Rapariga no Verão, portanto, chega ao século XXI como uma incógnita: uma obra congelada à força no tempo e que, reaquecida 26 anos depois, tenta “sobreviver” em novo ambiente, muito mais hostil e complexo do que aquele no qual nasceu. Vítor Gonçalves se formou na Escola Superior de Teatro e Cinema de Lisboa e se aproximou de nomes como Pedro Costa (também formado na Escola), Joaquim Pinto e Ana Luísa Guimarães – todos creditados em Uma Rapariga no Verão, respectivamente como assistente de direção, operador de som e montadora. A mesma produtora do longa-metragem, a Trópico Filmes, fundada em 1984, realizaria O Sangue (1989) estreia de Pedro Costa no formato longo e outro filme essencial na cinematografia portuguesa moderna, e A Nuvem (1992), de Ana Luísa Guimarães. Não à toa, lá estava Vítor Gonçalves como figura central na produção de ambos. Contextualiza-se o filme aqui não apenas por informação, mas especialmente como tentativa de compreender o surgimento de um filme tão especial como este. Que tipo de inquietações moviam Vítor Gonçalves ao decidir por trabalho tão enigmático e único? Que tipo de autoria mobiliza toda uma equipe de jovens artistas, ainda descobrindo suas potencialidades, a se entregarem à atmosfera de estranhamento e opressão que domina os planos (e também os sons e as músicas, como comentado adiante) do filme e que movimenta a personagem principal a nunca estar imóvel no mesmo lugar?

Isabel, a protagonista (vivida por Isabel Galhardo, e a confluência dos nomes não é acaso), parece incorporar toda uma geração. Ela é a jovem ainda em formação, disposta a renegar o imobilismo e a herança familiar de maneira a seguir adiante com a história pessoal e também a História de um país – algo próximo às heroínas populares e libertárias do cinema de Carlos Reichenbach. Isabel guarda muito de Vítor Gonçalves, de Pedro Costa, de Joaquim Pinto, de Ana Luísa Guimarães; é um alter ego coletivo na sua disposição de não se acomodar ao que se espera e ao que se anseia dela, definindo seus passos pelas vontades que lhe guiam, ainda que as consequências se mantenham sempre misteriosas – e, talvez por isso, fascinantes. Isabel (logo, toda uma geração) não pretende simplesmente romper com o passado e inventar um novo presente; o que ela deseja é apenas a liberdade de poder fazer isso se tiver vontade. Como em alguns dos melhores momentos da obra de Philippe Garrel, o rompimento em Uma Rapariga no Verão se dá, no limite, sob os signos da emoção e do desejo, à beira do abismo, ainda que as expressões (do corpo, do rosto, da pele) se mantenham num hieratismo mais aproximado (mas não igual) aos “modelos” de Robert Bresson.

A meia hora inicial de Uma Rapariga no Verão sintetiza o mundo que o filme habita. Um mundo de olhares esvaziados, de emoções reprimidas e de um ir e vir físico em que o meio de transporte é o trem, símbolo eternizado e simbólico do nascimento do próprio cinema. O trem tem importância no filme para além de servir de trânsito aos personagens: ele é o que liga o passado e a tradição (a casa de campo onde Isabel mora com o pai e a irmã) e as possibilidades infinitas de um novo mundo (a cidade de Lisboa, o amor errante e inconsequente, a noite que reserva surpresas). A estação de trem é o portal que leva o filme do clássico para o moderno, primeiro como fissura entre uma coisa e outra, e depois como união possível e natural.

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Não é por acaso, portanto, que o primeiro plano de Uma Rapariga no Verão pareça extraído de algum filme de Eric Rohmer: Isabel sentada no mato, de blusa alaranjada e calça jeans, exposta ao sol, em pleno calor. Como uma mancha invasiva ao bucolismo de um ambiente de tons sóbrios, ela se levanta e caminha contrária à câmera, indo ao encontro do pai, Zé Manuel (José Manuel Mendes), que a espera debaixo de uma árvore para lanchar. No plano final do filme, após se despedir do pai doente numa cama de hospital, Isabel é mostrada ao longe, no cruzamento de uma ponte, a sair abruptamente de dentro de um carro e caminhar agora em direção ao eixo da câmera. Entre um extremo e outro do filme, todo um mundo se expandiu: o bucolismo deu lugar ao concreto; a nostalgia do trem se abriu para os veículos automotores; a figura paterna não está mais presente; a ilusão do amor perfeito se desfez. “Imagine o próprio oceano tornado areia no meio de um furacão. Imagine uma tempestade silenciosa de ondas imóveis de poeira amarela. É preciso escalar essas várias ondas de cinza dourado, voltar, e escalar de novo, e escalar continuamente sem repouso nem sombra”, dizem as palavras apresentadas como conto de fadas num programa de rádio produzido pelo namorado de Isabel, Diogo (Diogo Dória), e escritas por Zé Manel.

Nos constantes turbilhões emocionais de Isabel, o filme insere a trilha sonora original de Andrew Poppy, acordes de uma expressividade que parece sair de dentro da personagem. Ora apresentada como diegética, outras como extradiegética, a música nunca é claramente um elemento do plano (nem mesmo na cena da danceteria), indo e voltando de acordo com os humores de Isabel e de suas caminhadas por ambientes de claro-escuro captados por uma fotografia que a enquadra como um espectro formado por contornos de luzes e sombras. Os cortes da montagem seguem a batida da música, consequentemente indo na pegada do ritmo interno da garota, em seus movimentos de entrada e saída do quadro, tendo o corpo como fisicalidade movida a estímulos diversos, a vontades nem sempre esclarecidas. “Preciso de alguém que goste de mim… Que goste de mim de outra maneira”, sussurra ela, num quarto de hotel. Numa entrevista recente, o diretou comentou ter pensado o andamento do filme como uma partitura.

A certa altura, Vítor Gonçalves faz um desvio, um corte interno no fluxo do filme, para fantasiar sobre os caminhos de Portugal (e dos portugueses) sob a égide da tradição. Com Isabel plenamente estabelecida na estrutura do filme, um estranho personagem, o caçador, aparece como contraparte acumulada dela e também de Diogo. Ele faz um longo monólogo num bar, arma de caça na mão, e narra as viagens que fez pela África colonial, os perigos corridos, os ferimentos sofridos e o ódio ao pai, que lhe legou a herança de se tornar um caçador e lhe suprimiu todas as melhores lembranças e símbolos da infância e da inocência. Pela única vez se afastando dos núcleos em torno de Isabel ou Diogo, a câmera segue o caçador até o interior de um navio, onde ele mantém um felino preso a uma jaula. O animal parece teleportado diretamente de Sangue de Pantera (1942), de Jacques Torneur, e seu destino talvez seja um sacrifício de libertação. Neste personagem do caçador, de poucos minutos em cena, se acumulam a história pessoal de um homem e a história geral (e opressiva e sangrenta) de uma nação cujo desenvolvimento no passado se deu a partir da exploração de outros povos. O preço emocional e econômico pesa sobre os ombros do caçador, de Isabel, de Diogo. Vítor Gonçalves disse recentemente que o personagem é uma espécie de fantasma, a invadir o filme sem ser convidado por representar exatamente essa herança traumática. Alguns críticos portugueses o apontaram como precursor da abordagem recente de tema similiar feita por Miguel Gomes em Tabu (2012).

Isabel e Diogo são jovens que renegam tal herança. Ela, especialmente, passa todo o filme sofrendo de um mal-estar nunca plenamente admitido ou identificado, e também fadado ao infinito. Porque Uma Rapariga no Verão não é um filme de trama a resolver ou de enredo aristotélico nutrido por elementos de resolução. O vai e vém de Isabel encontrará o ápice através da mise en scène na sequência de planos mais hipnótica de Uma Rapariga no Verão,o instante no qual tudo se conjuga numa série de quadros e requadros em que se dá “a identificação dos modos da construção ficcional aos modos de uma leitura dos signos escritos na configuração de um lugar, um grupo, um muro, uma roupa, um rosto”, conforme Jacques Rancière no livro A Partilha do Sensível. A cena em questão se passa no estúdio de rádio onde acontece a última gravação do programa feito por Diogo e Zé Manel. Na edição sonora, Diogo pede que a frase “Quando abriu os olhos…” seja colocada no fim do relato, antecipando o desfecho do próprio filme através do uso da palavra e do som. Isabel chega ao local e, enquanto Diogo e um técnico gravam numa cabine, ela é vista de fora, a olhar, enquanto as palavras do programa parecem narrar o que lhe acontece, fantasiando em torno de uma malfadada viagem de trem. O plano, então, se divide em três reenquadramentos internos: Zé Manel e um técnico numa cabine à esquerda; Diogo e outro técnico à direita; o corpo de Isabel entrando no quadro e se interpondo entre as duas cabines, fixando-se na linha divisória. A câmera dá um vagaroso zoom em direção à cabine de Diogo, um corte isola o pai na outra cabine e um terceiro corte já mostra Isabel caminhando pelo corredor (novamente em sentido contrário à câmera). Aqui, é Diogo quem invade o quadro, para receber das mãos do técnico o rolo de gravação com o programa final enquanto observa a moça deixando o lugar.

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Tudo se desfaz em instantes e a ilusão de um outro tempo fica perdida talvez para sempre. O filme apresenta este momento de revoluções pessoais por uma construção espacial de precisão impressionante, que permitirá que Isabel enfim se reconcilie com o pai e continue a jornada de estar sempre caminhando contra o previamente estabelecido. “É a assimilação das acelerações ou desacelerações da linguagem, de suas profusões de imagens ou alterações de tom, de todas suas diferenças de potencial entre o insignificante e o supersignificante, às modalidades da viagem pela paisagem dos traços significativos dispostos na topografia dos espaços, na fisiologia dos círculos sociais, na expressão silenciosa dos corpos” (Rancière).

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