Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa, de Gustavo Galvão (Brasil, 2014)

outubro 4, 2014 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Paulo Santos Lima

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Crise de meia estrada
por Paulo Santos Lima

A crise é o que dá gás à engrenagem da vida, na medida em que algo tem de ser feito. Nas artes, a constatação dessa crise, um olhar crítico, de crisis, significou largos passos avante, quando não de pegada definitiva. Cidadão Kane (1941) de Welles, Bitches Brew de Miles Davis, a ejeção de um cansado David Bowie da maquiagem e purpurina ziggystardustica quando imergiu na trilogia de Berlim, El Greco em relação ao Renascimento ou Cézanne em relação ao regramento velado do figurativismo são marcos de crise inspiradora de uma expressão crítica. Há crises menos capitulares, mas fortes de tão interessantes, rendendo elevações estéticas, como as de personagens,como o Michael Corleone, do Chefão de Coppola, a do detetive ordinário Mike Hammer de A Morte num Beijo (1955), filme que derruba a ideia de que a revelação é a salvação do mundo.

A crise rendeu, também, o melhor do cinema brasileiro, dos Olimpos de Sganzerla, Glauber, Tonacci, Saraceni e Humberto Mauro a fortes incursões visuais de um Jece Valadão em Eu Matei Lúcio Flávio (Antonio Calmon, 1979) e, com o mesmo Valadão, um filme fundamental sobre o horizonte perdido (Os Cafajestes, de Ruy Guerra, 1962). O Paulo Onório de Othon Bastos em São Bernardo (1971), os de Carlos Reichenbach Império do Desejo (1980), Amor, Palavra Prostituta (1982), Extremos do Prazer (1984) e Filme Demência (1986) – neste, a crise do homem moderno na cena-síntese dos corpos de Ênio Gonçalves e de Imara Reis, linda como o Paraíso Perdido, desentendendo-se – além de Noite Vazia (1964) e outros de Walter Hugo Khouri, São Paulo S.A. (1965), de Luis Sergio Person… são algumas ricas provas de uma certa tendência no nosso cinema.

Filme Demência (1984), Carlos Reichenbach

Filme Demência (1986), Carlos Reichenbach

Mais que tendência,  uma quase tradição, inclusive nos últimos 20 anos. De Terra Estrangeira (1996) e Um Céu de Estrelas (1996) a Crime Delicado (2005), Super Nada (2012) e O Rio nos Pertence (2013), personagens lidam com uma crise que, quase sempre, parte de dentro, mais íntima e existencial, mas com boa parte dos filmes tentando imagens e discursos falados que aludam a um estado de coisas maior, ambicionando o país, a história. Encontrar a imagem e a medida (e o tom) para essa imagem é difícil, pois há um longo caminho entre o drama íntimo de um personagem e o mal-estar de uma civilização. Por isso, nesses últimos anos, obras como Brasília 18% (2006), O Príncipe (2002) e O Viajante são algumas das raras preciosidades que tiveram precisão de aludir a algo maior. Assim como o melhor dessa tendência também está em opções mais delimitadas, como Via Láctea (2007), de Lina Chamie, que não aspira a algo além do drama de um homem (Marco Ricca) que toma um fora da amada, num problema que é comparado (não decretado ou projetado) ao do caos paulistano. É uma questão de CEP, de relação mais direta com o espaço-tempo, como em Corpo Presente (2011), de Marcelo Toledo e Paolo Gregori, no qual o mal-estar existencial de três seres diz respeito a São Paulo – um olhar político sobre algo, e não algo transformado num juízo político exterior a ele. O simbólico tão aplicado a esses filmes que querem falar de algo maior, aqui, nesses exemplos, diz respeito apenas à intimidade do personagem – nada mais forte, entre os filmes dos últimos anos, que Beatriz (Raissa Gregori) andando perdida na chuva paulistana e Cynthia (Simone Iliescu) não conseguindo camuflar, com forte maquiagem, seu desalento na imagem epíloga de Corpo Presente.

Riocorrente em inundação

riocorrente

Riocorrente (2013), Paulo Sacramento

Reiterando, não é um problema buscar por essa aspiração, mas é a escolha que pode arruinar a razão de cada uma das imagens de um filme. Não é bem o caso de Riocorrente – o edifício construído não ruiu – mas este longa de Paulo Sacramento sofre de algumas rachaduras pela sua própria arquitetura colossal. Ao mérito (inegável) em optar por imagens de forte punch, beirando um quase nonsense muito a ver com o pop-retrô dos anos 1980 e por tipos que parecem saídos dos HQs paulistanos daquela década, parece faltar solidez que firme a crise dos três personagens: do vazio de uma mulher à letargia dum jornalista intelectual e a pulsão reativa dum ladrão de carros, o que se sobressai é a construção, ou seja, uma espécie de referência a algo já conhecido. Talvez não fosse a intenção do diretor, mas é nessa fraqueza que Riocorrente se mostra interessante: sua beleza está na impossibilidade de se levar à frente esse personagem clássico do cinema brasileiro, pois o que parece sobrar agora é apenas a tradição, o selo, a marca. É como se não desse para se levar a sério um mal-estar doméstico que teima em se dizer histórico, maior, sociológico, de um mundo chamado “História do Brasil” ou “Este É o Brasil”. Quase aberrantes, tamanha sua intenção de impacto, as imagens simbólicas do longa ganham posição ao reiterar que o passo a tomar é exaurir a matriz já esvaziada.

É fácil um dado identitário se tornar grife, marca, selo. O filme de Sacramento lida com isso, tem coladas algumas etiquetas, mas elas estão grudadas de forma abrasiva, e a imagem final do tal rio corrente em chamas é prova de uma relação consciente que o filme tem com esse repertório consagrado. O Cinema Novo é outra natureza profunda do cinema brasileiro que muitas vezes é raptado à condição de valor, de ISO 9002. É um lugar próximo ao dos personagens em crise, pois é um norte que serve de catapulta a vôos mais altos, para transformar filmes em importâncias políticas (antes de serem filmes, cinema). Não é culpa do Cinema Novo, mas de uma leitura pouco acertada sobre o que significa modernidade (em perspectiva ao classicismo, do qual o cinema brasileiro é bastardo, ou filho rebelde que rejeita sua origem).

O Cinema Novo surge porque o que se está a falar, aqui, é das referências fortes no cinema atual. Mudemos Cinema Novo para cinema social. Mantenhamos a crise. Não as únicas, mas duas premissas fortes entre vários filmes nacionais dos últimos dez anos, da crise (banal e meio de boneca Barbie) da Suely de Karim Aïnouz à dos personagens de Riocorrente (neste último, um deles querendo pôr fogo no circo, mais à Sganzerla, mas também podendo ser o Glauber pós-Cinema Novo/pós-moderno-didático-apocalíptico-logarítmico de A Idade da Terra). À crise atual, há mais performance que ação. Fiquemos, então, com projetos idem à largura do passo. Chegamos a Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa e ao fim dessa introdução.

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Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa (2013), Gustavo Galvão

Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa (2014), Gustavo Galvão

Título do segundo longa de Gustavo Galvão, Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa vem de Uivo, de Allen Ginsberg. Vem também da vontade do diretor de trabalhar com um repertório beatnik. Curioso que a cultura beat é marca da modernidade americana do século XX a ponto de ter se tornado… uma marca, uma identidade que esteve no melhor artístico (Two-Lane Blacktop, que já é o pé na estrada nas pradarias da contracultura, em 1971) e, no pior, em roadmovies fetichistas com estradas e rebeldes cool e desgarrados, com cigarro na boca. É o preço a se pagar pela força de uma tradição identitária – como o Cinema Novo, a Bossa Nova, o samba, personagens em crise como Paulo Martins/Jardel Filho de Terra em Transe (1967).

Mas o beatnik não está na tradição do cinema brasileiro. A contracultura, esta sim, fez história íntima conosco, nos anos 1960, quando já havia uma real modernização na cinematografia nacional, num momento em que se encontrou uma forma (uma imagem) que traduzia e inspirava todo um estado de coisas, caótico e de crise, que encontrou estrada para falar do país – mentalidade, tradições, conflitos e história. Contracultura (também conhecida como Cinema Marginal, Teatro Oficina, Tropicalismo) e Cinema Novo também incluso. O que importa é que a opção de Galvão parece reiterar a escolha em não seguir pelos passos das tais certas tendências do cinema brasileiro. Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa é a desconstrução, pois sua pretensão é a de olhar mais para a falta de substância duma crise que, hoje, parece mesmo artificial, construída, manjada demais para favorecer uma reação avante. Não à toa, a lógica circular que engendra a narrativa e o percurso de Pedro (Vinicius Ferreira) e do falante e discursivo rebelde Lucas (Marat Descartes) só confirma uma imobilidade. O drama de Pedro, que o filme acompanha desde seus primeiros passos na estrada, fugindo de Brasília para lugar algum, é sério, mas sua repercussão histórica é banal. Não será o filme, mas os próprios personagens que trarão isso à tona, um ao outro, sobretudo e em princípio Lucas, que ridiculariza Pedro e sua mobilidade letárgica, que parece sem fundamento, sem projeto. Pela boca e overacting do Lucas de Marat Descartes, o tom é de pândega, de consciência transmitida por farsa assumida. Essa falta de horizonte vista entre a melancolia e a ironia tem, aí sim, algo de beatnik. Mas só nisso. Inclusive porque, até nos Estados Unidos, o único modo de estabelecer uma vivência mais originalmente beat seria através do próprio mito. E não, não o On the Road (2012) de Walter Salles, ou Into the Wild (2007), de Sean Penn, ambos puros fetichismos do etiquetário de marcas. Mas através de registros mais apurados, talvez nas bordas do cinema do Abel Ferrara (mas o lá de trás, de Blackout), do Road to Nowhere (2011) de Monte Hellman lidando com os anos 2010, ou o Herzog de Bad Lieutenant – Port of Calls: New Orleans (2009). Mas são presenças rarefeitas, ainda que mais firmes a uma ideia contra cultural do beatnik, nada a ver com os adesivos que David Lynch colou ora com certa luz e quase sempre com uma grosseria oportunista atroz.

Ao lidar com esse desejo por beatnik (mais que desejo beatnik), Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa não demonstra facilidades, e procura pisar a passo possível – possível, jamais seguro. O terreno é árido, como mostram os primeiros minutos (e passos) de Pedro no filme, uma estrada de massa asfáltica batida, linhas de arames farpados e a raia condutora da estrada assentando geometrias quase intransponíveis. Reforça a alta pressão, a forte música dissonante – composição de Ivo Perelman, músico cuja escolha parece ser menos uma facilidade de ter um grande nome e mais a constatação de que tudo, do cinema à arte e também à trajetória daqueles personagens, está ocupado por um repertório que se confunde com a própria história da humanidade. Afinal, a crise de Pedro, saberemos mais à frente, é já uma recorrência do cinema e da literatura existencialista, uma crise do homem, mas que, no filme, é uma crise mais doméstica de um sujeito de saco cheio de Brasília. O próprio Lucas, aventureiro desgarrado com quem Pedro esbarra nessa que poderia ser a fuga de casa dum menino aborrecido com os pais, será uma figura quase metalingüística, um porta-voz da gramática que compõe a estética off road, rebelde e contra a cultura.

Se existe alguma teatralidade, ela está no espelhamento entre o silêncio de Pedro e a máquina falatória de Lucas. O primeiro transmitindo uma densidade que é diluída nas provocações de Lucas. E o discurso libertário deste último sendo desmentido pela anestesia de Pedro. Parece óbvio o antagonismo, mas é a partir duma relação que se constrói entre os dois que, em vez de uma revelação, surge uma constatação sobre a trajetória circular, de cachorro correndo atrás do próprio rabo, na qual ambos estão desde o início de seus projetos. Não é o retorno de Carlos (Walmor Chagas) ao frenesi materialista de São Paulo em São Paulo S.A., pois ali é a revelação duma roda-viva com a qual nós e o cinema teríamos de lidar ainda ali (e o cinema poderia lidar ainda hoje). É a constatação de um estado de coisas arruinado, porque optou-se em certo momento pela dinâmica de um disco – de um disco arranhado. A lógica é reiterativa, contemplativa de certos arquétipos, que são utilizados levianamente ou levados a sério demais. A própria montagem do filme revela, lá na frente, uma ideia de mobilidade imutável, de ação que não age, apenas posa. O próprio Lucas é isso, e ele grifa ao longo da narrativa que a suposta genialidade de um amigo chamado Jesús (um caminhoneiro paraguaio vivido por Leonardo Medeiros), o pé na estrada, a rebeldia contra caretice geral e o gosto pela liberdade sem fim são meras colagens, grifes.

Constatar a prisão do giro em falso e a opção em não levar o fracasso a sério não é uma saída colorida aos personagens. É o pesadelo sonorizado pelo sorriso de Pedro e Lucas e pela trilha de aspereza brutal que parece gritar ao mundo que a estrada agora é um círculo pintado no chão. Não é uma constatação pacífica, já que existe uma recusa a essa certa tendência em se consumir repertórios como crise, redimensionamento macro etc. O drama de Pedro e Lucas é justamente não encontrar na crise um certo repouso. É uma questão a ver com o cinema e as artes brasileiras. Nisso, a revelação de Uma Dose Violenta de Qualquer Coisa segue uma postura beatnik de expor um sintoma crítico, de ir assim contra a cultura. O disco é mais visto pelo movimento na vitrola, raramente pelo giro em torno de si, e nunca pelo som repetido pelo arranhão. Aumentar o som a estourar os tímpanos já é alguma mudança.

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