Two Years at Sea, de Ben Rivers (Reino Unido, 2011)

março 1, 2015 em Em Pauta, Fábio Andrade

twoyearsatsea1

O real aludido
por Fábio Andrade

“The creek is lying, flat and still. It is water though it’s frozen”.

Joanna Newsom

“O que é imaginário na tela precisa ter a densidade espacial de algo real”.

André Bazin

Nos primeiros planos de Two Years at Sea, Jake Williams caminha por um descampado coberto de neve, indo em direção a uma floresta. O som das travas de sua bota cravando na superfície gelada é tão destacado quanto cada presença de preto naquela imensidão branca. O plano é por um instante interrompido pela cartela com o título do filme, que é sucedida por outro plano que, apesar de parecido, provoca uma pequena (?) elipse de tempo, trocando o descampado branco pela penumbra, já dentro da floresta.

Tal descrição  relata com alguma inteireza a ação registrada por Two Years at Sea, mas dificilmente traduz com qualquer fidelidade a experiência de assistir a estes primeiros planos. Pois, mais do que afirmar um mundo diante da lente, o que faz a abertura do primeiro longa-metragem de Ben Rivers – artista até então com uma carreira em galerias de arte-contemporânea pelo mundo – é afirmar a própria matéria que registra esse mundo: toda a caminhada de Jake Williams é intermediada pelos grãos expandidos do 16mm em Cinemascope, pelo alto contraste ruidoso entre preto e branco, e pelas onipresentes manchas da revelação que criam uma espécie de véu sobre a imagem e direcionam os olhos não para um ponto além do suporte, mas para sua própria superfície. Quando se entra no universo de Two Years at Sea, a primeira coisa que se vê é o próprio filme.

twoyearsatsea2
A indexicalidade de uma obra de arte está longe de ser discussão recente. Se o cinema entra nas galerias de arte e nos museus também por se encaixar dentro de uma discussão material que o solicita, o autoriza e, em última instância, o coopta (não totalmente à revelia de seus próprios interesses), a reflexão sobre a indexicalidade material da película perpassa a própria invenção da fotografia e do cinema – encontrando em André Bazin um de seus pensadores mais dedicados. O que interessa, no filme de Ben Rivers, não está, portanto, na afirmação um tanto banal (embora por vezes necessária – em especial quando se flerta com o documentário, como é o caso) de que “isto é um filme”, mas no uso da própria matéria fílmica como suporte potencial de representação. Em Two Years at Sea, a película significa.

Há, portanto, um conflito ontológico entre opacidade e transparência que não se ambiciona resolver, mas sim expor como contradição. Esse desejo parece nortear boa parte dos procedimentos do filme, a começar pelo título: a despeito de abarcar de maneira muito específica um tempo (dois anos) e um espaço (no mar), ele faz referência a um dado absolutamente extra-fílmico, ao qual só se tem acesso por meio de entrevistas – Jake Williams comprou a casa na floresta onde mora com o dinheiro guardado após trabalhar dois anos como marinheiro. O filme começa depois, muito depois disso, mas decorre desse momento anterior – e até a presença da cartela com o título no princípio do filme, e não no final, como é mais comum no cinema contemporâneo, aponta para um episódio de onde se parte, e não onde se quer chegar. Em Two Years at Sea, a especificidade do tempo e do espaço – vértices tão caros ao pensamento e à ação cinematográficos –são mais aludidos do que fotografados, atualizados, realizados. Em um movimento paradoxal para um filme que usa planos longos para acompanhar uma personagem em sua rotina (real e inventada), a ação, aqui, aparentemente significa pouco, ou quase nada.

twoyearsatsea3
Há certa ironia que um filme tão flahertiano reivindique justamente o suporte analógico – “a imagem fílmica cria uma analogia com o espaço real”, (Aumont), assim como no cinema “a imagem das coisas é também a imagem da duração delas, como que uma múmia da mutação” (Bazin) – para em alguma medida esvaziá-lo como analogia do tempo e do espaço. Em primeira instância, o cuidado aqui com o registro das ações no tempo e no espaço (a passagem das estações; uma chaleira a ferver; uma árvore que é derrubada; uma fita que balança ao vento; uma nuvem que corta o quadro) serve quase como nota irônica de uma realidade que se curva ao inexplicável: um dia, Jake Williams pode amanhecer dentro de seu trailer, no alto de uma árvore, sem que personagem ou espectador façam qualquer idéia do motivo.

twoyearsatsea8

 

A impressão que se tem do filme de Ben Rivers é de uma conotação que transborda todo esforço de denotação, embaralhando dentro e fora, passado e futuro, atual e virtual (são muitos os espelhos, vidros e reflexos do filme). Paisagens que se tornam fotografias; fotografias que mais parecem paisagens.

twoyearsatsea4 twoyearsatsea5 twoyearsatsea6 twoyearsatsea7

Mas em segunda instância, e talvez mais importante, a analogia aqui não está na película como impressão do mundo, mas como objeto simbólico: em época em que o cinema faz a curva definitiva para a imagem eletrônica, a película 16mm da câmera de Ben Rivers se irmana à recusa de Jake Williams por um mundo que não seja concreto. Pois embora um retorno a Walden tenha se tornado resposta cada vez mais frequente da arte contemporânea (e uso o termo aqui não para trancafiá-lo no museu, mas para abranger música, poesia, cinema, literatura, etc) aos rumos do presente, o Williams de Two Years at Sea não é um personagem de negação à cultura, mas sim de um apego à materialidade da cultura – não à toa, o filme dedica tanto tempo a filmar fotografias e livros, e reserva boa parte de sua duração à interação com maquinários mecânicos (um toca-discos de vinil; uma lavadora de roupa; um carro, etc). O que importa aqui é certo contato físico com o objeto, seja ele um tronco de árvore, uma torneira de água quente ou uma película 16mm.

twoyearsatsea9 twoyearsatsea10

O contato material, porém, reserva segredos que o transbordam. Nesse sentido, o filme de Ben Rivers se alinha à compreensão de uma fenomenologia do excesso de Jean-Luc Marion, para quem o ente que se oferece à visão por vezes oferece além do que é possível ver. Mais do que uma idealização programática do isolamento junto ao mundo natural, Two Years at Sea usa a imanência do suporte cinematográfico – “Pela primeira vez, entre o objeto inicial e a sua representação nada se interpõe, a não ser um outro objeto”, inaugurava Bazin – para afirmar uma existência física que transcende a apreensão do ente. Naquela que é talvez a sequência central e mais bela do filme, Ben Rivers mostra Williams carregando galões de plástico e troncos de madeira por o que parece ser um longo percurso, até chegar em um lago. Ele monta peça por peça e cria um bote que o permite flutuar, desinteressadamente, sobre a leve corrente do lago. A flutuação – estado por excelência do cinema contemporâneo – é aqui reafirmada como conquista de princípios físicos elementares, frisando que a sensação de um corpo sem matéria só pode ser alcançada a partir de um artifício que considere e imprima a matéria como corpo.

twoyearsatsea11

Share Button