Tudo que aprendemos juntos, de Sérgio Machado (Brasil, 2015)
outubro 15, 2015 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Pedro Henrique Ferreira
Juntos?
por Pedro Henrique Ferreira
Podemos tomar Tudo que Aprendemos Juntos por um filme aparentemente convencional, uma repetição da fórmula hollywoodiana do sujeito em crise de inspiração que precisa lançar-se a uma jornada de redescoberta. Podemos tomá-lo por um filme esteticamente protocolar, repetindo chavões e formas da representação naturalista em voga. Quando estamos diante de um momento de ação, saltamos à câmera trêmula, e em momentos introspectivos, ao desfoque dos arredores. Nos momentos de expectativa, a câmera lenta ou o abandono do ambiente sonoro para dedicar-se a ruídos específicos. A atuação também segue um certo tom dramático consagrado no cinema brasileiro atual de verve mais comercial (e não à toa, a preparação de elenco é assinada por Fátima Toledo), mesmo no uso de não-atores. Exemplar desde a decupagem da sequência inicial, quando Lázaro Ramos estuda o violino, prestes a participar do concurso de sua vida, e o diretor registra a cena por um superclose nas cordas sendo arranhadas, mas não radicaliza a perspectiva do momento e corta para um plano fechado do rosto do personagem compenetrado, introduzindo-o com clareza. Eventualmente, até permite-se uma licença ou outra do padrão, mas rapidamente retorna a ele para não frustrar a expectativa do espectador mais habituado.
E no entanto, Tudo que Aprendemos Juntos não é um filme protocolar. Existe notável preocupação de Sérgio Machado em realizar uma obra de caráter mais próximo do mercado audiovisual padrão, mas, ao mesmo tempo, há também vontade de perverter algumas fórmulas mais básicas e discutir com alguma profundidade, fora do escopo mais óbvio, a realidade social do país. O primeiro ato do longa-metragem introduz todos os algarismos clássicos do gênero: o pródigo violinista que sofreu uma paralisia durante o concurso para ocupar uma vaga na principal orquestra do país; a oferta de emprego numa ONG que atua na comunidade de Heliópolis, em São Paulo, e que ele aceita por motivos financeiros; o menino talentoso e morador do bairro periférico, que luta para tornar-se violinista enquanto habita um ambiente violento; seu melhor amigo, um rebelde que vive da clonagem de cartões de crédito, tenta conduzi-lo para o mau caminho. Como em Escola do Rock (2003), por exemplo, Laerte precisa aprender a vencer o egoísmo e ter uma relação verdadeira com o outro para poder superar a crise de inspiração. Como estamos em um país de Terceiro Mundo, naturalmente, o violinista representa uma classe social, e este “outro” é o pobre.
Tudo conspira para que tenhamos o desenrolar mais clássico possível da situação. No entanto, o filme acaba por dar alguns nós e fazer um retrato bem mais complexo do que o esperado. Primeiramente, na figura e nos arredores de Samuel, que são praticamente o oposto daquilo que esperaríamos deles. O menino é atormentado pelo pai, mas este não é um alcoólatra. É um evangélico, um trabalhador assíduo que traz remédios para casa. Encarna a boa consciência, cujo problema com o filho, não profundamente desenvolvido, é este ser amigo de bandidos. Heliópolis se mostra um lugar acolhedor, com forte senso de comunidade, longe dos clichês de favela violenta. Mesmo o tráfico local age em defesa da lógica de sobrevivência da comunidade, e seu principal inimigo é a polícia. O jovem Samuel, amante de música erudita, é também muito acolhido pelos próximos, inclusive pelo amigo bandido, que rouba e assalta somente porque o trabalho honesto para ganhar R$ 600 não parece ser uma oportunidade real, e não exatamente por má índole.
É a própria imagem da periferia e da organização do tráfico de drogas como modus social que sofre uma perversão notável. Raros os momentos em que estas instâncias se mostram verdadeiramente ameaçadoras, para além do estrangeirismo de Laerte a ela. E para além de seu preconceito inicial, que vai sendo paulatinamente rompido. Exemplar é o fato de que nenhum conflito externo na trama se constrói: o grande embate do filme é de Laerte consigo mesmo, primeiramente tendo de vencer o preconceito contra a nova profissão e abraçá-la com entusiasmo; em seguida, num novo dilema, tendo de decidir se retornará à vida anterior e prestará novo concurso para a orquestra, perseguindo novamente seu sonho e as expectativas de seus pais, ou se continuará no lugar que deu-lhe nova inspiração.
Mas o verdadeiro grande salto do longa-metragem é tardio. Começa quando Samuel confronta Laerte sobre sua posição. Fica evidente o abandono da sociedade imposto à comunidade, representado no frequente abandono dos professores àqueles meninos das aulas de música. As pessoas vão ali para resolver as próprias vidas, mas não doam-se àquele mundo. Isso porque aquele mundo não tem nada a ver com a sociedade exterior. Ele é um cosmos que tem suas próprias regras e não pode ser conciliado com outra ordem, cujo princípio é excluí-lo. O abismo entre estes espaços habitados pela classe média-alta e os espaços habitados pelas classes mais baixas mostra-se insustentável. Principalmente quando o menino vem a ser assassinado pela polícia quando ultrapassa de motocicleta numa blitz, e isso alavanca uma revolta dos moradores da favela, numa das grandes cenas do filme. Mascarados, erguendo barricadas e jogando pedras contra os assassinos de Samuel, é significativo que os moradores gritem à polícia que não precisam deles lá. É como se dissessem ao governo que não precisam de suas leis, que os dois mundos estão apartados e que todo esforço de conciliá-los é uma violência: tanto a exercida pela polícia quanto a exercida pelo abandono do professor (e espertamente, no misé-en-place dos atores, Laerte fica posicionado ao lado dos policiais, ouvindo os gritos).
Tudo que Aprendemos Juntos é particularmente feliz na compreensão que tem do sentido da revolta, da criminalidade, da comunidade e do abismo social entre as classes e os espaços. Em vários níveis, o filme consegue expor estas muitas fissuras, diferentemente de boa parte da produção nacional. O pai trabalhava para sair da favela, acreditava que o lugar era o inferno e berço de todos os males. Já os jovens enxergam ali o paraíso. O inferno é o que vem de fora para impor suas regras, e a elas devem reagir. “Nós é bom, mas não é bombom”, diz uma das canções de MC Bin Laden, também sobre jovens que aceleram de moto como ato de resistência.
Um último dilema ainda se impõe com a real conotação de um problema moral. É diante dele que o longa-metragem de Sérgio Machado fraqueja um pouco. Laerte irá se dedicar ao novo emprego na orquestra ou ajudará a apresentação da orquestra de Heliópolis? Após o protagonista ter adquirido a consciência do apartamento entre estes dois mundos, qual deles escolherá? Como portar-se moralmente diante desta situação? A resposta do filme é a conciliação. A mesma conciliação proposta pelo título. Embora o próprio longa-metragem reconheça que isso é impossível, Laerte fará os dois. Mas ele tem mesmo tempo para os dois? O caminho é mais sonhador do que realista. O otimismo não condiz com a verdade. A conciliação aqui soa mais como um ausentar-se de uma resposta realmente categórica. É problemática porque se afasta do escopo do problema que até ali o filme construía primorosamente. Soa como resposta simplesmente impossível. É possivelmente este sentido de conciliação que faz Sérgio Machado perseguir um cinema comercial. Não obstante, a frágil opção final pela reafirmação mais básica da união dos opostos não descontrói totalmente a forte impressão que Tudo que Aprendemos Juntos lega do quão difícil e complicado é o problema espacial e social retratado.
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