Torres e Cometas, de Gonçalo Tocha (Portugal, 2012)

maio 5, 2014 em Em Vista, Fábio Andrade

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Que farei eu com esta espada?
por Fábio Andrade

“Recebemos um convite: ir viver em Guimarães. A CEC, a Capital Européia de Cultura. Guimarães, 2012. Os fundos comunitários europeus. Para vir viver a cidade, habitar a cidade, ouvir a cidade. Nunca tinha vivido em Guimarães. Passar uma temporada e, se tudo correr bem, fazer um filme. (…) Esta cidade que é o berço, onde tudo começou, o início do país, o berço da nação”. É com este texto, lido em voz over pelo próprio diretor, junto aos créditos em tipologia branca sobre fundo preto, que Gonçalo Tocha abre Torres e Cometas. Tal como ABC África (2001), de Abbas Kiarostami, um filme de encomenda que nasce se expondo como tal e que, muito rapidamente, deixa suas intenções às claras: habitar a cidade, ouvir a cidade, filmar a cidade. E, se tudo correr bem, fazer um filme.

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A princípio, não seria um grande espanto se tal premissa rendesse um documentário de observação modesto, um registro cotidiano, feito com maior ou menor talento, dessa experiência de habitar a cidade. Mas Guimarães não é uma cidade qualquer. É o berço, onde tudo começou, o início do país, o berço da nação. Nas mãos de Gonçalo Tocha, um documentário de encomenda sobre a capital européia da cultura rapidamente abre clareira para uma investigação da natureza e da alma portuguesa, de como ela perdura (em mutação) ao longo da história e o que esse entendimento permite ao presente. A câmera treme sobre um tripé fincado no fim, mas a lente aponta para o princípio de tudo: olhar para o berço da História é se confrontar com a necessidade de perceber seu lugar dentro dela.

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Como em É na Terra, Não é na Lua (2011), o diretor trabalha o fora de campo como se buscasse um campo total, que não se encerra no tableu. As conversas fora de quadro com o técnico de som direto se tornam uma nova camada diegética, que, se estendendo à imagem, não tardará a incorporar a filmagem à matéria do próprio filme. Novamente, trata-se de um filme a quatro mãos, quase artesanal, mas que busca extrair, dessa intimidade, um olhar sobre algo muito mais amplo do que permitem os limites de seu pequeníssimo núcleo de produção. Logo após o prólogo, o técnico de captação sonora posa em frente a um castelo, enquanto, fora de quadro, Tocha lhe dá orientações sobre seu posicionamento na composição, até que a fluidez do quadro se estabilize na imagem perfeita, simétrica, pregnante, fixada, imutável. Violinos invadem a banda sonora sem maior justificativa, criando um acento dramático àquela simples ação de um diretor posicionando um elemento (que é sua equipe) no quadro. “Estás a gravar?”, ele pergunta. Um corte seco mostra uma pequena orquestra a executar a trilha que invadia o plano anterior, em outro ponto da mesma locação, trazendo ao quadro o que estava fora, mas também à diegese o que, em um primeiro momento, parecia não-diegético.

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Torres e Cometas
é todo composto por essas pequenas interações e ressignificações, buscando uma dialética possível na própria experiência cotidiana. Mas se em É na Terra, Não é na Lua tais interações serviam para incorporar ao filme a experiência da filmagem, aqui os sentidos do gesto são outros. Do encontro entre equipe e realidade filmada, busca-se não só uma inclusão (mesmo quando claramente escrita, encenada) do processo que resultou em filme (como em parte do cinema de Eduardo Coutinho), mas reatar as pontas entre a história oficial e os bastidores, o legado histórico e o presente vivido. Estamos, afinal, a falar de Guimarães, lugar em que até mesmo os monumentos mudam de lugar, e os largos, embora eternos, não permanecem os mesmos. É do encontro entre a rigidez histórica e a contingência de um presente que responde às suas necessidades mais imediatas que o filme tratará: torres e cometas, afinal.

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Uma vez estabelecida esta relação, todo o filme será imantado por esse confronto com a História, e mesmo os mais cotidianos dos gestos ganharão peso simbólico. Passar pela frente ou por trás de uma estátua não é tão somente uma trajetória desinteressada, mas um gesto em relação ao passado, ao presente e ao que pode o cinema. “Olha, a próxima pessoa que passar atrás da estátua, eu vou passar à frente, para veres a diferença”. Ao espectador brasileiro, é inevitável que tal cena – aqui, no princípio do filme, ou seja: uma escolha que o filme toma antes de prosseguir – traga à memória a encruzilhada de Estrada para Ythaca (2009), dos irmãos Pretti e dos primos Parente, que, perto do final de sua viagem, precisam escolher qual rumo seguir. Afinal, uma grande questão para se viver e se produzir arte em um país com o vulto histórico de Portugal – e algo que separa, por exemplo, o cinema de Manoel de Oliveira do de João César Monteiro – está resumida nessa decisão: passar pela frente ou por trás da estátua? Como se portar diante do busto de Dom Afonso Henriques (ou de Camões; ou de Eça de Queiroz)? Qual a atitude justa diante deste vulto que nos determina e, ao mesmo tempo, é determinado por nós?

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Torres e Cometas
parte para a investigação de uma História vultuosa com a certeza de viver um presente que se apequena sob sua sombra. Portugal não é mais o império que um dia fora, e essa melancolia parece imprimir em cada frame do filme. Durante uma manifestação por conta da presença do presidente de Portugal na cidade, Gonçalo Tocha filma um homem que segura um cartaz, clamando por visibilidade ao presidente: “Presidente (…) vê-se vê a contestação” (sic). O cartaz, porém, não tem sequer um palmo de largura, com o protesto redigido à caneta em um pedacinho de papel pardo. O pedido para que o presidente veja é de difícil visibilidade mesmo quando ampliado, em plano detalhe, na grande tela do cinema.

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O filme se calca nessas pequenas ironias, em um ruído entre intenção e gesto que caracteriza o extraordinário humor lusitano. Em outro momento, a suntuosidade da fachada de um prédio histórico é contraposta, com uma panorâmica, à dificuldade de se chamar por ordem alfabética, e sem qualquer decoro, os presidentes de juntas ao microfone de uma assembléia, cuja finalidade permanecerá misteriosa. Há uma distância física entre um ponto e outro que a câmera percorre e que rapidamente se torna, também, uma distância simbólica, em um movimento que pode ser visto como tentativa de contraposição ou de paralelismo, mas que certamente afirma que Portugal não é apenas um daqueles dois vértices, mas ambos, em contato. Mas uma vez percebido o peso de uma História que se se tem a obrigação de empunhar, qual o melhor projeto de presente? A faca forte e feia que nunca precisa ser afiada ou a réplica inexata da espada de Dom Afonso Henriques?

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Caso o filme parasse por aí, teríamos um retrato tão preciso quanto desencantado da experiência portuguesa contemporânea. Mas Gonçalo Tocha escolheu passar pela frente da estátua, e é justamente neste gesto deliberado, nesta ação pela diferença e pela irreverência, que o Torres e Cometas se torna verdadeiramente fascinante: à medida em que o filme progride, percebe-se que não seria de se estranhar se a espada de Dom Afonso Henriques não cortasse lá tão bem. Dos moradores locais, saudosos por uma História que em verdade nunca foi, chega-se à imagem síntese da célebre basílica local que, por nunca ter sido terminada, tem apenas uma das torres previstas em seu projeto original. Dois senhores conversam – em cena abertamente encenada – sobre como seria bonito e do interesse de todos se a segunda torre fosse um dia construída (embora não exista sequer espaço físico para isso), na tentativa de “corrigir” uma História que foi escrita comendo sílabas aqui e ali, e que, por isso, vive ainda hoje a ressaca de uma glória incompleta, prestando reverência a um projeto que nunca chegou a ser.

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A impressão é de que basta “habitar a cidade, ouvir a cidade, filmar a cidade” para que símbolos desse império gauche, dessa História manca que se quer mais inteira do que é, e que ao mesmo tempo se desdobra nos cartazes microscópicos do presente, se apresentem como partes fundamentais da construção de Portugal, e que é preciso se reconciliar com essa incompletude não como “defeito”, mas como traço distintivo tanto de um passado mumificado, quanto de um presente que vive e pulsa. É preciso, em suma, partir do princípio de que o “quero cheirar teu bacalhau, Maria” – como entoava a canção de Recordações da Casa Amarela (1989), aqui transfigurada na banda Os Meninos Marotos e seu trocadilho insuspeito para o “cometa” do título – pode ser tão potente quanto a basílica amputada, em especial se vistos como faces de uma moeda que possui dois lados idênticos.

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