Tip Top, de Serge Bozon (França/Bélgica/Luxemburgo, 2013)

outubro 9, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

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O ato de ver
por Filipe Furtado

Tip Top versa sobre uma investigação policial cujo crime é mantido fora de cena e cuja resolução acontece depois que ele termina. No meio tempo, todas as informações são expostas com a maior transparência: cada personagem não poderia ser mais visível e por isso mesmo as peças se recusam a fechar. Em Tip Top, as coisas são o que são e por consequência são difíceis de olhar. Bozon transforma o romance de Bill James numa comédia com ênfase no comportamento das suas duas personagens centrais (Isabelle Huppert e Sandrine Kiberlain): uma, apaixonada por bater; e a outra, voyeur – “são como a polícia”, um personagem coadjuvante bem observa. Suas excentricidades vão se tornando, muito mais do que o mistério, o principio que guia o filme (sempre que François Damiens está em cena, por exemplo, carrega no seu corpo toda uma transparência de ser que o filme traz consigo – cada movimento seu é absolutamente explicito nos seus propósitos).

Tip Top é um filme sobre o que se vê. Sua investigação policial é somente um condutor desta ideia. Na maior parte do tempo, o filme se dedica a filmar Huppert e Kiberlain fazendo pouco mais do que observar – o contraplano para um personagem que somente observa é um dos motes que ele retorna com grande frequência – e é interessante justamente que este ato de ver não se apresente na chave voyeurística habitual do cinema; não falamos de De Palma ou Powell aqui: o ato de ver tem pouca relação com o cinema, mas é como um retorno essencial às coisas. O desejo de Tip Top é devolver a primazia ao olhar.

Como sempre nos filmes do cineasta, o retorno a elementos do seu gosto cinéfilo, como os números musicais, têm pouca relação com um simples exercício de cinefilia, e mais com o desejo de se buscar, nas coisas que lhe dão prazer, ferramentas para melhor chegar ao mundo (pensemos nas releituras de Barnet e Walsh em La France, seu filme anterior). Não poderíamos estar mais distantes de um cinema estéril. Desde a brilhante sequência inicial, na qual Damiens salva um informante ao caçar briga com todo um bar de imigrantes através de um repertório de impropérios que estabelece o tom direto que o filme manterá a partir dali, esta tensão constante é sempre jogada para dentro da sua encenação.

Ao mesmo tempo, Bozon (e sua co-roterista Axelle Ropert) alteram o romance de James de forma a criar uma série de casais interraciais e que o filme encara com grande facilidade. Bozon se dedica a filmar o visível que se faz invisível, logo a ênfase sobre os imigrantes argelinos que estão em cena o tempo todo, mas permanecem um corpo estranho, não assimilado. Tudo em Tip Top sugere justamente este espaço em trânsito, uma miscigenação que o país ainda não aceitou, com a presença dos argelinos em todo lugar, mas em lugar nenhum, sonegada por um inconsciente que prefere não vê-los. Tip Top por vezes sugere o que Caché (2005) seria se Michael Haneke não fosse sadista e entendesse o sentido do humor. O filme encontra um tom muito mais honesto para lidar com esta panela de pressão reprimida, com esse sentimento de uma história suprimida prestes a dar as caras nas varias frestas que Tip Top abre, justamente por ser um filme cujo princípio é sempre de uma expansão de olhar. O trabalho do cineasta é justamente colocar sua câmera neste transição, captar este espaço entre mundos e observar, assim como fazem suas personagens.

Neste espaço, Serge Bozon, em parceria com sua irmã Celine, que como sempre é sua diretora de fotografia, filma tudo com uma clareza exemplar. Há uma fisicalidade e frontalidade no registro que surpreende, num filme cuja estilização poderia sugerir num primeiro momento um mundo fechado como, por exemplo, os filmes de Wes Anderson. Há um gosto por uma paleta de cores que puxa para tons azulados e neutros e uma repetição de motivos e quadros que reforça a impressão de que estamos num universo em que a honestidade de comportamento é acentuada. Tip Top é um filme muito engraçado para o espectador que se envolver com seu senso de humor particular, mas é também um filme brutal na sua apresentação desse mesmo senso de humor – algo que é reforçado pela montagem do François Quiqueré, que está sempre pronta para tirar o filme do balanço, nunca deixá-lo se aquietar no seu ritmo peculiar. Assim, o filme se mantém sob uma tensão constante, tanto dos elementos estéticos díspares, quanto da bomba social que ele circunda, e o trabalho de Quiqueré é essencial para dar vazão a isso garantir que o burlesco amplie o escopo sem tirar a seriedade da empreitada.

Esta tensão se torna parte essencial da construção do filme, que não à toa se apresenta como uma produção híbrida – nem filme policial, nem comédia, nem filme para festivais, nem cinema comercial. É um veiculo para Isabelle Huppert que nega ou perverte muito do que seus fãs esperam (e o filme se recusa a tratá-la como mais do que uma parte do amplo elenco), da mesma maneira que é também um filme que é muito pequeno na abordagem, mas cuja ficção sugere um mundo de possibilidades para bem além do que ele próprio consegue cobrir, em sequências que passam sempre a certeza de que há muito mais em jogo ali, de que cada figura que corta o quadro está envolvida na sua própria intriga que só ocasionalmente se encontra com o filme.

Tip Top instala ali, neste espaço em trânsito, sua riqueza, e é uma profunda generosidade de espírito que permite que a sua mise en scène se adapte a todo tipo de situação e corpo que adentrarem o quadro. Bozon soma ideias com grande facilidade, algumas vezes de formas claras (pensemos na forma como a rigidez de Huppert complementa seu sadomasoquismo) e outras justamente bi partindo o filme – por exemplo, entrecortando eventos importantes com contracampos que inserem um burlesco absurdo à ação, como quando transforma a descoberta de um corpo numa sequência de suposta necrofilia para um observador distante. Tip Top é uma co-produção entre França, Luxemburgo e Bélgica – o que é um dado a mais nesta tapeçaria de um filme entre espaços -, mas parte do que torna-o um filme fascinante é justamente como, sequência a sequência, de maneira que lembra Blind Detective, de Johnnie To – para ficarmos em outro dos filmes-chave do ano -, ele cria um universo que responde a um especifico local muito próprio. Seus desvios são sua maneira de lançar um olhar sobre algo tão visível como perdido, às claras.

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