The Smell of Us, de Larry Clark (França, 2014)

agosto 12, 2015 em Em Vista, Luiz Soares Júnior

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Tara fóbica
por Luiz Soares Júnior

The Smell of Us é um filme construído milimetricamente (leia-se para um efeito calculado) sobre a fobia do corpo pleno, frontal e em terceira dimensão. A sua visão “perspectivada” é achatada por uma câmera que privilegia os torneios e meneios do corpo háptico, e não as extensões e distensões do corpo visualizado. Esta fobia ao corpo “de direito” e à câmera à altura do homem é “implantada” (infectada?) no filme de forma paradigmática pela camerazinha no celular de um dos personagens que, como um verme ou parasita endêmico, é incapaz de qualquer visão perspectivada ou afetiva, alimentando-se vampiricamente apenas do que os outros fazem ou sentem, aderindo aos dorsos e membros adolescentes. Provavelmente, este olhar para quem o Outro é inacessível senão como privilegiado menu behavorista é o alter ego de Larry Clark encarnado em The Smell of Us.

Se não fosse a câmera fóbica ao corpo pleno – a câmera vampiresca, que se serve do pretexto diegético para apossar-se do filme – The Smell of Us seria no máximo um filme instigante para se pensar as possibilidades de figuração do corpo amorfo e metamórfico do adolescente no cinema de hoje. Este corpo em gestação, que desliza e se esvai (em humores, em sangue e esperma), que é consumido por tudo aquilo que o circunda, e que vive propriamente de circulação e ingestão energética do meio, está certamente lá. É um corpo que não tem o direito à plenitude figurativa porque provavelmente ainda não se estabilizou, embora não mais possa ser apreendido sob o espectro dos devires de uma inconsciência “molecular”, como a criança. Meio-termo entre plano e fluxo (que é, a esta altura, uma divisão pobre de Burdeau para se pensar retórica e figuração no cinema contemporâneo, mas vamos lá), o filme ocupa um  espaço intersticial entre docudrama, clipe roqueiro e psicodrama novelístico que já nada tem a nos dizer (falo deste “interstício”, da fricção e da imantação entre estes gêneros). Os filmes que Eloy de la Iglesia realizou com sua gang de outsiders nos anos 1980 esgotaram o filão melo-novelesco, o Gus Van Sant de Mala Noche (1986) e de Últimos Dias (2005) esgotaram (de forma oposta e complementar, digamos) o veio existencial e a instabilidade figurativo-existencial. Para o filme de Clark, restam alguns momentos inspirados nos quais a impressão do caráter “passageiro” do corpo adolescente adquire uma certa aura fantasmagórica, como se aquilo que víssemos não estivesse se realizando plenamente – não pudesse realizar-se de direito, já que a evanescência de tudo e de todos da fase ainda é intensificada pelo efeito das drogas e do álcool -, a sombra de uma sombra ou uma projeção na parede: Michaell Pitt tocando violão, um giro pela pista de skate ou pela boate, o suicídio de um jovem rejeitado. Nestes momentos, o filme é obrigado a conciliar ou afiliar duas démarches (ou vampirizam-se mutuamente?): o ponto de vista do menino “da câmera-celular” e o ponto de vista, mais elegiacamente atmosférico (impressivo, impressionante mesmo), destes corpos que parecem flutuar – corpos e consciências a que nenhum alter ou superego, nenhum princípio de realidade advirá, no preciso momento, para impedi-los de tombar sobre o asfalto ou o chão orgíaco de sangue e uísque do apartamento da “velha senhora”.

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Falei acima em consciências: claramente, o que estes trechos  nos relatam consiste num inventário propriamente espectral de atos e devires autômatos, isentos de consciência; mas, sempre que parecemos estar embarcando nas viagens hipnagógicas dos meninos, vem a “câmera-celular”do rapaz e quebra o jogo (o pacto)! Ou antes: denuncia a estratégia, assume o alvo, desvirtua a possibilidade e inabilita o espectador de participar (tanto como testemunha quanto como co-ator, e estas posições em todo cinema são muitas vezes intercambiáveis; elas não se excluem ou opõem) da cena. Será que não ficara demasiado evidente o diapasão zumbi do masturbatório Math (Lukas Ionesco), a quem todos querem foder mas que não consegue a rigor foder com ninguém, pois vive, emaciado e vacilante, emasculado pelo envoltório grisâtre de uma pulsão de morte, de um narcisismo “de morte”, que o impede de sair do lugar? Não é este aliás uma espécie de personagem guia ou reflexo invertido do filme que, como o barqueiro de Caronte, parece-nos simpaticamente corresponder ao apelo e à moeda, para logo em seguida revelar-se como aquele a quem todos sucumbirão? O corpo de Math já não habita nenhum espaço-tempo, seus beijos são gélidos e selam viscosamente o último ósculo, suas belas mãos pertencem a um Tadzio medusino.

Mas um cineasta não deveria ser justamente aquele capaz de realizar o paradoxo impossível a qualquer outra arte – a rigor: de evocar na enfermidade “da imagem” a possibilidade do beijo, macular a Beleza “da imagem” com a sombra do horror, sujar e resfolegar “na imagem” como se corcoveássemos em sonho? Clark parece não acreditar em sua própria pegada, e vive tentando demonstrar-nos que o paradoxo maior do cinema – o de ser uma arte materialista mas que também catalisa sonhos e projeta estados intermediários ou alterados de consciência – lhe é impossível de realizar. Alguém que vive de demonstrar sua própria impossibilidade de evocar, por intermédio da superficial e superfluida “empreinte” da imagem, as profundezas, não só do inconsciente mas igualmente da supra ou da infra-consciência (“A arte, o começo do terrível”, dizia Rilke). Clark não acredita no cinema, não crê no plano como instantâneo de epifania, ou na sequência como circuito analógico de reminiscência, por exemplo; ele precisa demonstrar que sabe filmar, que sabe a quem e a que filma, que aquilo é um docudrama mas também uma fotonovela (a cena com a madame encharcada de vinho em cima de Math). Ele precisa nos provar e a si mesmo.

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Falo isso porque há coisas de que gosto em Smell, como os trechos citados; é um filme com uma cor decadentista evidente, com uma intensidade muitas vezes próxima do anti-clímax atingido por certos filmes de horror mais profundamente horríficos  (em sua relação com o fora de quadro e campo), com aquilo que de tão horrífico não pode propriamente ocupar o quadro, e permanece assombrando-o (penso em Natalie Granger de Duras mas também em coisas que Giulio Questi filmou em Arcana). Mas, no momento certo em que o imaginário do espectador poderia vir a ocupar e instalar um personagem, um estado de coisas ou uma atmosfera no quadro, aparece o garoto da micro-câmera e toma o nosso lugar. Isto é justo? É justo para com o cinema, para com os prodígios desta arte feita de imagens, mas nas quais o fantasma adquire, em sua evanescência própria, o quilate e a pujança de um soco visceral? A motricidade, a veemência de uma descarga elétrica, o paroxismo de um raio? Smell tem seus momentos, assim como seus horrores, perpetrados num estado de graça quid facti e quid juris: todos estes efeitos de clipe, esta sujeira excessivamente pensada da imagem e da luz, a obscenidade “demonstrativa”, na qual a mais valia de um corpo marmóreo é enodoada pelo rigor mortis de um corpo entregue à morgue, a masturbação da câmera na mão em certos momentos… mas tudo isto são coisas velhas de um velhíssimo mau cinema (todo mau cinema nasce velho, me parece), devidamente registradas e regaladas.

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Stan Brackhage era rigoroso com Andy Warhol – o Warhol de Empire, por exemplo, em que o xamã americano não conseguia ver propriamente uma obra; ao filme de Warhol, demasiado entregue ao “laissez-faire” do zoom e do fluxo, faltava na visão de Brackage o indispensável trabalho das mediações. O filme mostrava-se amorfo, inorgânico, sem Eidos nem Idéia visíveis. Ao contrário dos Warhol mais “laissez-faire”, Smell trabalha, desgasta-se, em alguns momentos suja-se (apesar de não querê-lo; e falo disto como uma qualidade, como no excessivo tempo dado ao homem do saxofone, por exemplo). Mas a obsessão de Clark em nos impor uma obra às expensas de uma demonstração, em querer nos convencer que sabe o que faz e onde nos leva – quando é o filme que deveria nos convencer! -, suplanta em mim a plenitude destes esparsos momentos “roubados” ao diretor, e acaba por gerar os efeitos contrários aos da plenitude (a vacuidade) e opostos ao maravilhamento nirvânico da contemplação: a mais profunda fobia de contato.

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