The Grandmaster (Yi Dai Zong Shi), de Wong Kar-wai (Hong Kong/China/França, 2013)

março 11, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

thegrandmaster

Contradições de um recomeço
por Pablo Gonçalo

São seis anos desde Blueberry Nights. Seis anos de silêncio e The Grandmaster, subitamente, emerge com uma força singular dentro da obra de Wong Kar-wai. O filme de abertura desta 63ª Berlinale – e de autoria de ninguém menos que o presidente do júri – é fruto de um projeto audacioso, uma produção de pompa, que começou a germinar ainda em 1997, enquanto o diretor de Hong Kong filmava os passos de tango de um casal de imigrantes gays numa Buenos Aires pouco convencional. Em Happy Together, essa bela obra, Hong Kong surge invertida, de “ponta cabeça”, como se houvesse um espaço de oposição, binário, entre o ocidente e o oriente, no seio do delicado processo político vivido pela cidade quando visto pelas lentes estrangeiras dos protagonistas. Um carimbo no passaporte, um passaporte extraviado, e a frase síntese do personagem Lai Yiu-fai, que acreditava poder recomeçar sua paixão, recomeçar sua vida. Os novos inícios, contudo, eram amargos.

Embora com peculiaridades, The Grandmaster tem o sabor de um recomeço. Há, de um lado, o retorno aos filmes ancorados na ação e nas artes marciais, que marcaram a primeira fase da carreira de Kar-wai. Com um anseio épico, The Grandmaster conta a trajetória de Ip Man, mestre do Kung Fu e do estilo Wing Chun. Logo na sequência e na luta de abertura, Ip Man, que foi professor de Bruce Lee, diz que o princípio do Kung Fu é resumido nas duas palavras que o intitulam: vertical e horizontal. A força de uma conduta inquebrantável, segura e firme – uma índole vertical. O ímpeto de derrubar o adversário, a horizontalidade. E toda a sofisticada arquitetura plástica da obra fia-se nesse princípio. O novo filme de Kar-wai não tem apenas ecos dos gêneros de Kung Fu; de forma mais direta, decide-se encarar frente a frente os pilares e as paisagens das artes marciais. É o seu código de honra que toma o primeiro plano. São os dilemas éticos das artes marciais que Kar-wai filma ora com minúcia, ora saltando para movimentos bruscos, nas cenas de lutas caras a este gênero, que, sutilmente, realçam o balé visual dos corpos.

Empolgado pelos tambores do ritmo épico, Kar-wai narra a história da passagem do bastão de Gong Yutian, mestre da Associação de Artes Marciais Chinesa, para um sucessor, ainda em 1936, em Foshan, cidade do sul da China. É o tempo de transmissão e resguardo de uma tradição que cadencia as reviravoltas do filme. Juntamente a Ip-Man, surgem Gong Er, filha do mestre Gong Yutian, e Man San, importante e ambicioso discípulo. Ainda que seja Ip-Man quem adquira o coroamento formal, o filme mostra as lutas subseqüentes e o ímpeto de contestar o poder de Ip-Man. No meio desse confronto, emerge a guerra entre a China e o Japão e Man San acaba por apoiar os japoneses. Aos poucos, Kar-wai ressalta ecos dos grandes movimentos da história no cosmos das artes marciais. Esses são alguns dos deslizes alegóricos que resultam nos momentos de fraquejo do filme. A narrativa, paralelamente, mostra a passagem da herança de uma tradição hesitando entre uma conquista por mérito, como no caso de Ip-Man, uma herança transmitida por laços familiares e uma tradição efetivamente roubada. Todo esse dilema parece resolvido com sutileza poética na esplêndida cena em que Ip-Man quebra o pedaço de um bolo sem sequer um movimento brusco… quando um golpe físico é sublimado por um gesto do espírito.

Por outro lado – e mais distante desse universo das artes marciais – encontra-se, novamente, a melancolia como um mote, que passa a morar nos olhos dos personagens de Kar-wai. Remete-se ao estilo de Amor à Flor da Pele ou da tônica mais lírica e intimista do diretor, que tornou Kar-wai célebre no ocidente. É o artista obcecado pelo rostos, pelos primeiros planos cadenciados por uma trilha sonora que convida ao desvario e que tenta desvendar os enigmas do tempo concentrados nos olhos de Tony Leung, ator que o acompanha nos seus melhores filmes.

Reflexivo, Ip Man afirma que a vida, assim como as estações, tem fases. O começo da sua biografia, seu casamento, sua família, teriam sido sua primavera. No entanto, essas fases são cíclicas e retilíneas e é aqui, nessa dinâmica temporal, que encontramos algumas singularidades da dramaturgia e da imagem de Kar-wai. O diretor é um mestre das elipses e um talentoso escultor de melancolias. Não por acaso, as estações do ano cadenciam os ritmos narrativos dos seus melhores filmes. São os recomeços, teimosos e inócuos, de Lai Yiu-fai. É o segredo do personagem Chow, em Amor à Flor da Pele, contado a um buraco num tempo budista. São gestos que insistem em sobreviver ao tempo, que buscam olhar novamente algo que está na iminência de desaparecer, mas que, como um afeto, ainda persiste. Em The Grandmaster, essas elipses adquirem uma predominância no terceiro ato do filme, quando Gong Er declara saber que todas as lamúrias são inúteis, mas que sem elas a vida não teria a mesma graça e talvez perdesse o sentido.

O interessante é perceber como esse tempo dramático é harmonizado pelo estilo imagético caro a Wong Kar-wai. Sua imagem é tremeluzente, com uma inquietação de luz interna ao quadro, como se o diretor buscasse outros e incessantes espaços visíveis dentro da sua própria moldura. É uma imagem que retorna a si mesma, como nos ciclos melancólicos distintos, talvez, de uma imanência nostálgica. Sua imagem é dilatada tanto pela câmera lenta como pelo esmero de concentração de um gesto, que Kar-wai consegue conduzir como poucos. Um passo da luta de Kung Fu ganha uma dimensão única. Gong Er desliza um objeto na mesa para entregar a Ip-Man e esse gesto, visual, sonoro, sintetiza todo o filme. A fotografia de The Grandmaster, assinada por Philippe LeSourd, também flerta com essa bifurcação visual, realçando a textura da água nas notórias cenas de chuva, a densidade da brasa numa fogueira, os espaços transitórios da neve e da fumaça. As estações dos personagens acabam traduzidas, pela fotografia, pelas passagens do estado da matéria. Wong Kar-wai transita entre os pólos da imagem, dentro de uma mesma imagem, para mutiplicá-la em afetos possíveis. Isso não é pouco.

The Grandmaster é, de fato, o melhor filme de Kar-wai desde Amor à Flor da Pele. Uma obra prenhe de síntese e de ecletismos. Não bastasse mesclar uma toada épica com lampejos líricos, o gênero das artes marciais com a melancolia, The Grandmaster também reúne as principais inquietações estéticas da própria obra do diretor. Trata-se do ápice de um artista maduro que está seguro e confiante do seu próprio estilo. Ao flertar com o tema da tradição, Kar-wai pare ce, aos poucos e inevitavelmente, filiar-se a uma linhagem local e apontar para um imponderável cosmopolitismo. Contraditórias, essas forças podem suscitar interessantes desdobramentos. Paradoxalmente, é essa mesma insistência em juntar pólos opostos que suscita os instantes de irregularidade do filme. Como Ip Man, Kar-wai parece consciente do perigo de um possível esgotamento – quando recomeçar também pode significar repetição.

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