The Grand Budapest Hotel, de Wes Anderson (EUA/Alemanha, 2014)

março 20, 2014 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Pablo Gonçalo

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O espaço da ficção
por Pablo Gonçalo

Os filmes de Wes Anderson evocam uma sedutora aura adolescente – uma adolescência da descoberta, de um instante primaveril, que emana como uma das tônicas mais evidentes dos seus enredos e cenários. Adolescentes não são apenas os seus personagens e protagonistas – como Max Fischer em Ruhsmore (1998),os garotos de The Royal Tenenbaums (2001) ou o par aventureiro de Moonrise Kingdom (2012) – mas é também com sinais adolescentes que o diretor interpela seus espectadores. Há, em Anderson, um gesto que busca despertar uma genuinidade do drama, do olhar e do jogo cênico.

Em The Grand Budapest Hotel é o prazer da narrativa, como figura implícita (e pulsante), que parece confortável ao entrar num cinema antigo, minuciosamente reconstruído por um estúdio, num afã de (re)experimentar minutos de uma clássica cinefilia. A primeira sequência é reveladora desta intenção: vê-se uma menina – tipicamente adolescente – segurando um livro e entrando num cemitério coberto por neve; ela se aproxima do busto de um escritor, preenchido por pequenas homenagens dos seus leitores; o livro que carrega possui o mesmo título do filme; ao ler, compartilhamos suas imagens literárias: um escritor conta a história do lendário Grand Budapest Hotel, que no tempo da narrativa está abandonado, mas já foi – antes da guerra, do fascismo e de uma trágico-cômica barbárie – já foi, e deixou de ser, um dos principais hotéis de luxo do mundo. Assim, entra-se no mítico e ficcional país de Zurbowka. São histórias dentro de histórias, mídias dentro de mídias (do livro ao filme, passagens entre narradores e narrativas), tempos históricos distintos e elipses intercaladas, como se essas mediações apenas quisessem teimosamente recuperar o prazer da leitura, do filme, ou, mais genuíno ainda, o deleite de ver, ouvir e contar uma história.

Veloz, a régia de Anderson nos conduz ao personagem Monsieur Gustave (Ralph Fiennes), o encantador mordomo do Grand Budapest Hotel que reconforta seus hóspedes aristocráticos com conversas sofisticadas sobre arte, moda, poesia, passando por jogos eróticos, segredos e confissões. M. Gustave pode ser reconhecido à distância pelo cheiro do seu perfume, por ser poliglota, por ter uma fala afetada e estabelecer relações públicas com a elite, indispensáveis para a fama do hotel. Ele é como um personagem proustiano, com tons mais patéticos destituído de qualquer ranço melancólico.

Em poucas sequências encontramos o mote que delineia o enredo dessa comédia. Trata-se da herança e, paradoxalmente, do direito à conquista de uma herança nobre. Theodor Adorno salientava que um Grand Hotel é “o único palácio, no qual permite-se entrar pagando”, o que, paradoxalmente, também revela o ocaso dos palácios como espaços exclusivos da nobreza. Ainda que travestidos por tons cômicos, esses são os conflitos – de entrada e exclusão – que rodeiam M. Gustave e Zero Moustafa (Tony Revelori), um iniciante lobby-boy do hotel que torna-se um aprendiz do mordomo. Essa clássica dupla de comédia obtém uma química própria, convincente, e sugere uma possível herança de hábitos aristocráticos transmitida a indivíduos de origem humilde. Trata-se, talvez, de uma (irônica) leitura norte-americana, calcada no mito fundador do self made man, sobre uma nobreza, original e decadente, da Europa oriental.

Inspirado nos contos de Stefan Zweig e influenciado pelas comédias de Ernst Lubitsch – como Ser ou Não Ser (1942) e A Loja da Esquina (1940) – The Grand Budapest hotel explora a habilidade de Anderson em narrar com imagens, cenários, figurinos e gags dinâmicas. Vê-se um sofisticado filme de estúdio que é consciente como poucos dessa linguagem. De forma inteligente, Anderson percebe que os espaços concentrados e reconstruídos pelos hotéis são análogos aos espaços do estúdio que o cinema oferece ao espectador. Como ambiente ficcional, o hotel seria a duplicação, estética e irônica, da convergência espacial e onírica dos estúdios. Há, entre ambos, muitas semelhanças. São espaços que condensam geografias e estéticas as mais distintas; locais de fábulas, na contramão do travelogue, que convidam o espectador à dispersão espacial. Para além, portanto, da detalhada reconstrução de um Grand Hotel, Anderson aproxima-se de um tipo de linguagem de estúdio cara ao cinema clássico e por ali inclina-se como um adolescente que redescobre um brinquedo antigo e coloca, habilmente, suas roldanas e engrenagens para funcionar. Constata-se esse gesto numa das suas melhores sequências de fuga, quando M. Gustave é tido como foragido e tenta escapar da polícia. Vê-se, ali, uma solidariedade entre Grand Hotéis do mundo todo e de um espaço homogêneo – uma língua e valores similares – transita-se entre geografias as mais distintas coligadas pelo luxo, o requinte e uma pseudo-aristocracia.

Essa ênfase no estúdio não ocorre por acaso.Umdos co-produtores do filme é Babelsberg, estúdio que localiza-se na cidade de Potsdam, próxima à Berlim, onde, antigamente, era a sede dos cenários da UFA, durante o cinema de Weimar, abrigando obras de Lubitsch, Lang e Murnau. O curioso é como essa parceria (entre uma produtora americana, um estúdio alemão e uma forte distribuição da Fox) talvez reverbere no filme ao salientar uma pesquisa de tons, cores, objetos, cenários e figurinos caros a contextos aristocráticos anteriores à segunda guerra mundial. No entanto, paira algo mais nessas parcerias. Talvez haja hoje em Babelsberg uma forma de lidar tanto com o cinema clássico como uma apropriação mais cômica e irônica com o passado da segunda guerra mundial. Um filme como Bastardos Inglórios (2009), de Quentin Tarantino, também foi filmado em Babelsberg. Ali o revanchismo simbólico do cinema queimando com Hitler dentro parece ecoar, numa brasa mais branda, na forma como a história e o fascismo, mesmo que latentemente, rodeiam o filme de Anderson.

Na lente cômica de personagens como M. Gustave e Zero Mustafa, o fascismo é traduzido como a perda do decoro, dos valores e trejeitos que visam um tratamento nobre, um código, uma forma de ver, ouvir e contar que as guerras e a brutalidade do século XX jogaram no lixo. A barbárie, ali, não é apenas o abandono do hotel, que remete aos regimes socialistas da Europa oriental. A barbárie revela-se na perda dos códigos clássicos de uma linguagem (também clássica). Trata-se, obviamente, de um ponto de vista conservador que, de forma contraditória, busca o riso genuíno, o prazer adolescente que não é o da subversão nem da contestação, mas pelo contrário, de redescobrir e reavivar o passado. Volta-se ao enunciado de Adorno: o espaço do Grand Hotel permite, pela grana, uma entrada a um palácio nobre e, talvez por isso, já kitsch. É como se, hoje, com um ingresso de cinema já não tão barato como outrora, pudéssemos transitar entre atores e figuras que vestem Prada – marca que, não por acaso, apoia o filme…

Externa, por demais externa, essa crítica passaria tangente e indiferente frente ao fascínio que o filme, entre os seus artifícios, oferece. É pelo riso sincero que The Grand Budapest Hotel distancia-se da melancolia, da nostalgia ou até de uma estética vintage. Equilibrando-se numa sofisticada ironia, Wes Anderson convida seus espectadores a rir da grande história (como pano de fundo da sua narrativa) e das pequenas histórias que narra. Com ele, esquiamos vertiginosamente pelo prazer da ficção.

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