The Bling Ring – A Gangue de Hollywood (The Bling Ring), de Sofia Coppola (EUA, 2013); Sem Dor, Sem Ganho (Pain and Gain), de Michael Bay (EUA, 2013)

setembro 26, 2013 em Em Cartaz, Filipe Furtado

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Grifes de consumo
por Filipe Furtado

À primeira vista, não há muito em comum entre Sem Dor, Sem Ganho, de Michael Bay, e The Bling Ring, para além de os dois serem filmes baseados em crimes verdadeiros. Ambos estendem naturalmente as grifes dos seus respectivos autores, e não existe nenhum grande ponto de contato entre as sensibilidades de Michael Bay e Sofia Coppola. Se a grossura do ataque à sensibilidade ao espectador de Bay e a leveza do olhar de Coppola não parecem dialogar, ambos são extensões muito naturais de extremos de um olhar contemporâneo. O que os aproxima é a forma como a ênfase na boçalidade de seus criminosos é usada para propor uma visão totalizante sobre suas respectivas esferas de consumo, e a maneira como estas propostas se estendem para sua representação: não haverá em The Bling Ring e Sem Dor, Sem Ganho espaço para qualquer sugestão de um mundo que exista além de seus universos autocentrados. Se ambos os filmes se revelam experiências deprimentes, é por na prática funcionarem como comerciais de si mesmos: o mundo é um filme de Michael Bay ou Sofia Coppola. Qualquer desvio ou contradição é mantida bem distante do quadro; sua simples existência é prova de um triunfo estético.

The Bling Ring flui com mais facilidade, dado o talento maior de Coppola; mas Sem Dor, Sem Ganho não deixa de ser um filme mais honesto. A despeito de todo o moralismo presente na narrativa de Bay, que segue passo a passo a lógica de “o crime não compensa”, ele é também muito consciente do olhar do seu consumidor. Seu filme sabe que toda a sua retórica pouco importa diante da experiência de assistir seus halterofilistas idiotas chafurdando no mundo do crime. Bay sabe que, no fundo, o texto é só um detalhe diante de suas imagens e que, em meio à sua confusão, elas não escapam do celebratório.

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Coppola não faz diferente, mas, calejada pelo mundo dos festivais e do cinema respeitável, sabe que pode praticar seu jogo duplo com completa impunidade: seu filme serve perfeitamente aos artigos de ocasião sobre o vazio da sociedade e para os mesmos adolescentes que retrata. Se The Bling Ring vai filmar na verdadeira casa de Paris HIlton, não é por uma crença estética na autenticidade, mas por se agarrar a um olhar muito próximo dos seus protagonistas. O deslumbre das imagens não é muito distante dos personagens. Os brucutús de Bay têm o mérito da transparência; sua feiura é exatamente aquilo que entregam.

Há algo quase tocante na forma com que Bay aborda Sem Dor, Sem Ganho como sua ideia de um filme de prestígio, dado ele ser pouco mais que um sub-Elmore Leonard vagabundo. É como se, depois dos três Transformers (filmes terríveis, mas que já eram transposições perfeitas dos seus interesses), fosse preciso provar que ele também era um autor relevante. Bay não conhece o termo sutileza: a expressão “sonho americano” é repetida à exaustão sem nenhum sentido cômico, geralmente acompanhada de motivos da bandeira do país. Se o maior valor do cinema de Bay sempre foi se debruçar sobre um olhar vil sem filtros e mediações, atitude que outros exemplares de grandes produções somente esboçam, aqui este mesmo olhar se desdobra sobre si mesmo. Sem Dor, Sem Ganho é menos desconstrução do que uma apologia, como se o filme gritasse que a culpa não é de Bay se a sociedade ao seu entorno é daquele jeito. Se existe alguma diferença do projeto de Bay aqui é a ausência completa de militarismo e do prazer ritualizado com o qual geralmente registra operações oficias de agentes de governo; é seu primeiro filme que não sugere ocasionalmente um comercial de recrutamento.

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Se Sem Dor, Sem Ganho trai um desejo de afirmação por parte do seu realizador; o filme pouco acrescenta a seus filmes anteriores para além de sugerir alguma autoconsciência. Há a mesma grossura nas imagens e o senso de humor ofensivo sem proporção (Bay é incapaz de calibrar suas piadas; independente dos alvos, o tom será sempre o mesmo) que marca seus outros filmes. Sem Dor, Sem Ganho é capaz de, no mesmo plano, se mover de uma piada sobre o desprezo de Mark Whalberg por seus clientes obesos para a imagem de um deles filmada com a mesma repugnância expressa pelo personagem, sem nenhuma ironia. Os pontos fortes do filme são os habituais do cineasta, como um uso expressivo da cor e boa presença de cena de alguns dos seus atores (em especial, The Rock). Há, sobretudo, o espetáculo de ver seu caso verídico transformado num cartoon: com o prazer por corpos artificiais do cineasta em primeiro plano, suas imagens de consumo que tanto fascinam seus personagens se tornam indistinguíveis deles mesmos. Bay deseja afirmar sua assinatura, mas só a alcança justamente pela maneira que afirma a si próprio como um grande consumidor de si mesmo.

The Bling Ring acrescenta ainda menos à carreira de Sofia Coppola – apenas mais um estágio na depuração que acompanha seus longas desde sua estreia. O cinema de Coppola foi desde o começo erguido sobre sua descrição precisa de uma existência isolada e ao mesmo tempo de privilégio, e podemos dizer que, se cada novo longa se revela menos interessante do que o anterior, é justamente porque este equilíbrio balança mais na direção do segundo – a mais sufocante e opressora existência das irmãs de As Virgens Suicidas (1999) é quase esquecida diante da descrição indolor de um universo de privilégio que domina seus filmes recentes, que encontram contraponto numa recusa progressiva de dramaturgia. Assim como Um Lugar Qualquer (2010), The Bling Ring tem enorme dificuldade de se articular para além do anedotário mais prosaico, o que é menos uma falha, mais a expressão de um olhar progressivamente dopado, para o qual se mover e tomar uma posição se revela sempre um grande martírio, gerando filmes satisfeitos em permanecer ali, espiando um universo no qual se sente a vontade.

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Não deixa de se tratar de um último estágio de uma produção em série, perfeitamente adornado pela fotografia de Christopher Blauvelt e Harry Savides, que transforma cada uma das bem escolhidas locações em Los Angeles em outra etapa do mesmo parque de diversões narcisista que seus personagens habitam. O filme ganha vida quando permite que seus jovens atores relaxem e interajam entre si, mas mesmo nestes momentos resiste uma nuvem negra de significado, da necessidade de o filme fazer valer a grife autoral e não se completar como o objeto dispensável que é. Está lá “Super Rich Kids” nos créditos finais para tentar a versão comentário cool da grosseria de Bay.

Haverá, porém, sempre prazeres perdidos: Coppola delineia certo tipo com perfeição e ela desconstrói o seu iPod de forma melhor ainda. É um filme sobre objetos – se Sem Dor, Sem Ganho transforma seus atores em corpos irreais, aqui isto não será jamais uma questão; há somente tipos, modelos, poses, repetidos a exaustão – e as maneiras que a câmera pode catalogá-los. Não surpreende que se trate de um filme sobre um grupo de adolescentes a cometer uma série de roubos que não só não inclua um único plano que sugira qualquer risco, mas que se revele, à exceção de uma sequência, um filme assexuado. The Bling Ring vive de curtos momentos que rapidamente se apagam em meio ao programa autoral.

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Os últimos doze meses produziram uma série de filmes americanos sobre sociedade de consumo que, em comum, têm a mesma existência entre crítica e sintoma, e a sugestão de terem sido pensados para gerarem textos, muito mais do que para serem assistidos (o melhor de longe sendo Spring Breakers, do Harmony Korine, ao menos após aceitá-lo como um remake mainstream do seu Trash Humpers). O que torna tanto Sem Dor, Sem Ganho como The Bling Ring especialmente desinteressantes neste universo é como eles existem inseparáveis do seu status de filmes de grife, seus longos editoriais tão mais frágeis quanto o cinismo no centro das suas operações. Se Sem Dor, Sem Ganho sorri satisfeito com sua constatação de que o mundo é pouco mais que uma versão sem robôs gigantes de um filme de Michael Bay, e The Bling Ring está mais que pronto para usar sua pretensa crítica para mais uma visita ao seu pequeno parque de diversões, ambos se unem na mesma incapacidade de evitar que seu teor autocentrado desande na completa autofagia. São o filme de autor como o mais pobre objeto de consumo. 

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