Terra Firme (Terraferma), de Emanuele Crialese (Itália/França, 2011)

dezembro 4, 2013 em Do Arquivo, Em Cartaz, Fabian Cantieri

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* Originalmente publicado em Outubro de 2011.

Terra em movimento
por Fabian Cantieri

Usemos uma má comparação como avanço dos tempos: em Stromboli, de Roberto Rosselini, uma mulher presa no campo de concentração durante a Segunda Guerra conquista um refugiado. Ele a leva para sua terra natal – uma ilha inóspita, cercada de uma população que respira e conserva a tradição do lugar. Eles vivem da pesca. EmTerraferma, os mais velhos se confrontam, diante de um momento de transição, em uma outra ilha italiana – seu sustento ainda vem da natureza, mas os peixes vão aos poucos dando lugar à beleza paradisíaca, cresce exponencialmente o turismo. Antonio fugia com Karin para construir um lar e se estabelecer em sua terra natal. Karin, sem conseguir se adequar ao seu entorno, permaneceu fugindo até se defrontar grávida diante de um vulcão em erupção – a ilha é o ponto final da personagem, ao menos metafisicamente; emTerraferma, a ilha perto da Sicília é ponto de passagem, lugar onde transitam os abastados (turistas) e os refugiados (imigrantes).

Enquanto uma ilha é isolada do mundo, outra é aberta ao mundo e faz dessa abertura seu principal meio de sobrevivência. O avanço dos tempos se faz no deslocamento entre as terras cercadas de mar – quando Sara (Timnit T.) aponta no mapa todo seu percurso, de onde veio e onde quer chegar, pergunta também onde ela está. Giulietta (Donatella Finocchiaro) avisa que aquele lugar era tão pequeno que não estava ali representado no globo. Não estava ali, mas era destino de muita gente. Destino temporário, mas ainda assim, um fim.  E é esse avanço que os tempos indicam – Stromboli era um ponto a se estabelecer, um lugar para se dedicar à construção do lar (e com lar, digo todo o entorno cultural que isso remete) ou, até mesmo para os que não se adequam a essa lógica como Karin, ter com Deus seu instante de revelação. Hoje não existe mais terra firme e se as raízes não são fortes o suficientes. Morre o homem e vende-se o barco (não à toa, a metáfora antiga da viagem) – o fim é estar em movimento.

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Mas é no instante seguinte de o filme apresentar tão vigoroso insight que ele resolve andar a caminho do porto seguro. Emanuele Crialese cria um filme-painel sobre a imigração. Um painel que transcorre como vagões-fotogramas (a cena do filho imigrante nascendo é o melhor exemplo), num movimento ininterrupto até apontar um trilho como “questão a se pensar”. Todos os elementos do novo porto estão lá – discussão pertinente ao novo mundo globalizado; a família unida lutando contra a instituição da lei desigual (mas nunca por seu maniqueísmo e sim por sua complexidade de aplicação); romance de verão e até as sugestões narrativas para se cair no clichê até chegar ao corte de último segundo que o evita, lembrando a estratégia bem enfática e recorrente de À Deriva, de Heitor Dhalia.

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A história real de uma imigrante que saiu da África e chegou à Itália num barco com apenas cinco pessoas, entre dezenas de mortos pela viagem é, sem dúvida, comovente. A estratégia de deslocar essa personagem do eixo narrativo para inseri-la à parte como um bisturi no corpus fílmico poderia ser bem interessante,  mas logo se percebe que o drama de Filippo (Filippo Pucillo) ironicamente obscurece grandes impactos da saga de Sara. Assim, de novo, temos uma perspectiva interessante: o diretor assume seu lugar com o ponto de vista daquele que vê a imigração acontecendo e não do imigrante – admite não poder dar conta do que é passar por aquilo e revolve a questão como Filippo lida com sua situação. Ele só age pelo impulso dado por uma estrangeira que, de passagem, não se conforma com o abismo entre sua condição de convidada de luxo e daqueles penetras que tentam invadir o barco na cena propulsora do filme. Com o abandono de sua potencial garota, por desacordo de atitudes (ela queria informar à polícia), ao fim, Filippo acolhe a atitude mais “humana” a ser tomada, independente da lei, e proporciona a Sara a chance de seguir seu rumo. Para Crialese, a imigração é complexa, demasiada desumana para se obter uma resposta comum. Num novo mundo pós colonial onde estar em movimento é o essencial, ancorar em terra firme é o martírio de milhões.

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