Terra de Ninguém, de Salomé Lamas (Portugal, 2012)

março 4, 2015 em Em Campo, Fabian Cantieri

terradeninguem

A generosidade, o silêncio, o embate
por Fabian Cantieri

A história do documentário abriga um panteão de filmes que por recorrência temática poderíamos chamar de gênero: aqueles que se dispõem a filmar o inimigo. Seja a crônica da vida de um ditador africano como Idi Amin Dada (Amin: The Rise and Fall), uma re-encenação das matanças de alguns dos líderes dos esquadrões de morte indonésios aos comunistas do país (The Act of Killing) ou do genocídio na prisão S21 em Phnom Penh, Cambodja (S21 – A máquina de morte do Khmer Vermelho), até mesmo o acompanhamento dos bastidores da campanha política de Lula em 2002 (Entreatos) ou o entendimento sobre moradores de coberturas brasileiras (Um Lugar ao Sol). O inimigo não é necessariamente uma incorporação do mal – apesar de muitas vezes o mal ser um antagonista necessário de enfrentamento para esses cineastas – mas um protagonista que por princípio não deve gostar, ou ao menos concordar inteiramente, com a forma final do filme feito sobre sua pessoa. O inimigo pressupõe uma promessa de conflito inerente ao gesto de filmar. Terra de Ninguém circunda os mesmos preceitos do gênero com o detalhe inicial de que Paulo de Figueiredo sempre quis contar suas estórias para a eternidade. Era uma rara vontade conjunta entre feitor e contador da estória.

Salomé Lamas envereda pelo caminho do bruto: entre a introdução e conclusão, sua forma praticamente cabal é uma longa entrevista com Paulo de camisa preta em fundo preto, entrecortada por cartelas-capítulos que numeram o beat de suas sentenças e pouquíssimas saídas daquele lugar abandonado. Não ouvimos a voz da entrevistadora, apenas seus sussurros registrando um diário-pensamento – seus “apontamentos” – de tempos em tempos. Diante de Paulo, quedamos numa dialética entre a perplexidade de seus atos e a apatia de sua mundanidade. Salomé tem um interesse genuíno nele para além de seu passado e suas estórias e todos os segundos de respiro antes e depois dos cortes entre capítulos são um pouco a mostra dessa preocupação que a cena muda anterior ao primeiro capítulo já indicara como tom. Ela quer ver sua fisionomia, seus gestos mínimos, como os olhos arregalados, sobrancelhas arqueadas, suas veias na testa sobressaltando, as leves esbaforidas com a boca que faz ao terminar de falar, a reação de Paulo diante da reação de Salomé após contar algo extremo e poder ver uma face de espanto ou resignação ou apatia que nunca veremos.

Não existe arrependimento algum na expressão de Paulo. “Sangue e pólvora são como sua coca e heroína”. Suas duas melhores amigas são a Winchester e a Magnum. Há uma secura, uma dureza e uma crueza no discurso que reverberam e amplificam os paradoxos de seus contos – casos muitas vezes carregados por uma crueldade ímpar. Diz que carregava membros humanos como penduricalhos de carro por puro exibicionismo e, no entanto, sua voz é embargada de uma ambiguidade de saber o sadismo daquilo e não se importar. “Para dominar o terror, só com terror”. Numa das estórias que ele começa com “essa é até engraçada”, diz ter visto um homem numa maca sangrando e um outro em pé de frente a um caldeirão pingando sangue na água com azeite. Havia uma acusação de que o homem tentara roubar a mulher de outro. Paulo foi até a vila e eliminou desde o curandeiro ao doente. Sem ordem de ninguém. Simplesmente por não acreditar em misticismo ou no além. Mais tarde ele completa seu pensamento se referindo a terroristas: “eu nunca eliminei pessoas decentes. Pessoas que possam ser chamadas de pessoas”. Essa montagem de pensamentos, posturas e falas que cristaliza um certo senso de justiça tão recorrente ao nosso cenário social brasileiro parece não afastar Salomé. “Para grandes males, grandes remédios” ou “quando a lei não permite que se mate o próximo e o próximo continua a matar seja quem seja, tem que haver uma solução” são reiterações contínuas de uma justificativa que ele faz questão de afirmar prescindir.

Paulo é um fundamentalista religioso ateu. Tem fé em Deus, em Cristo e nele, mas às vezes nem em Cristo, nem nele, às vezes nem no homem… certamente não no homem. Como ter fé em Paulo? O primeiro reflexo é sempre o primeiro intermediador e vice-versa: Salomé. A cineasta tem a postura mais generosa possível, apesar de assumir “posições distintas” ao fim. Na introdução ela pergunta: “o que você acha que estamos fazendo aqui?”. Ele: “não sei ao certo, sei que eu sempre quis contar a história da minha vida e daí cada um pensa o que quiser”. Salomé então toma a vontade de Paulo como mandamento. “Paulo está determinado a contar a verdade, o que aconteceu realmente. Estou interessada na sua verdade, não na minha, não na de mais ninguém”. Deixa ele contar sem o condenar. Mas não é só um deixar estar, um respeito aberto de manifestação, mas também uma relativização construída: “quem recruta, organiza, arma, fornece e paga aos mercenários GAL? Quem dá luz verde para os assassinatos, apontar as vítimas e dá ordem para disparar? (…) Se o silêncio é a única resposta a estas questões, não deverá ser esquecido que existem ocasiões em que o silêncio é a atitude mais eloquente”.

Salomé se preocupa com um mal maior, como se aquele mal menor fosse só um pequeno vestígio. Para ela, Paulo é uma peça de uma organização burocrática muito mais complexa. De fato, ele o é, mas não deixa de ser a peça final que engendra, dá vida e alimenta uma máquina de matar. Difícil não lembrar do julgamento do tenente coronel da SS Adolf Eichmann, momento em que Hannah Arendt dizia ter se espantado ao não conseguir “retraçar o mal incontestável de seus atos, em suas raízes ou motivos, em quaisquer níveis mais profundos”, por não existir ali “convicções ideológicas” ou “motivações especificamente más”, mas falta de uma elaboração concreta de um pensamento diante de uma burocracia aprisionadora. Não era “estupidez, mas irreflexão”. “A questão que se impunha era: seria possível que a atividade do pensamento como tal – o hábito de examinar o que quer que aconteça (…) – estivesse dentre as condições que levam os homens a se absterem de fazer o mal, ou mesmo que ela realmente os ‘condicione’ contra ele?”. Seria possível olhar para Paulo – ou qualquer justiceiro, seja da GAL ou alguém que prenda gente no poste – e tomá-los como pessoas irreflexivas?

Eichmann era posto imerso num regime nazista burocratizante que cerceava o pensamento. No caso de Paulo, apesar do governo poder ser o fomentador, não existe um regime específico que o impele. Ele tem todo o tempo do mundo para parar e pensar. Seu pensamento ao longo de mais de trinta anos permanece dentro da mesma lógica – existem pessoas que não tem solução, logo precisam ser solucionadas. Ele mesmo se encara como alguém que não muda mais. Deveríamos tomar ele então como alguém sem solução por parar no pensamento? O filme começa esquadrinhando uma casa abandonada até chegar no aposento da entrevista onde o cenário está montado. Até que ponto Paulo merece o adorno de um cenário? Salomé o condiciona às melhores condições para ouvir tudo o que ele queira contar. Ao ouvi-lo, é possível perdoa-lo? Ou até que ponto somos nós quem precisamos perdoá-lo? Até que ponto isso não é uma falsa pergunta, visto que ele mesmo não clama pelo perdão de ninguém?

Salomé não o condena nem pede o perdão do espectador. Só o ouve, sem que aquilo em nenhum momento vire tratamento de expurgação. Saímos da sessão com os cantos catchy de “menina, tome cuidado” e “há problemas que não têm fim” reverberando em nossa consciência. Talvez este problema não tenha mesmo fim tão cedo, mas o ceticismo alegre logo dá lugar ao apontamento final: ela o encontra, ele diz que ela nunca vai entender suas opções de vida, ela rebate que se preocupa com ele e o filme só é lembrado como mais uma coisa. É uma mostra que eles viraram, de certa forma, amigos. A cartela final é a declaração de um afeto quase maternal: “acabo por perceber que dou esta notícia a todas as pessoas que conheço, até as menos próximas, como se o meu pensamento em aflição fosse que todos deviam conhecer o Paulo e que se não o conheciam a falta era deles”. Salomé parece ter adotado Paulo à revelia de seus espectadores que nunca farão o mesmo. Este afago é a passada de mão na cabeça que até então ela evitara fazer. Um gesto silencioso que, como ela mesmo nos ensina, é o mais eloquente.

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