Spotlight – Segredos Revelados (Spotlight), de Tom McCarthy (EUA, 2015)

setembro 1, 2016 em Em Cartaz, Marcelo Miranda

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Sobre a eficiência
por Marcelo Miranda

Na já memorável participação como comentarista da cerimônia do Oscar 2016 na TV Globo, Glória Pires elogiou Spotlight – Segredos Revelados por ser “muito bom de assistir, bastante acessível”. Deixando de lado o aspecto caricato do comentário da atriz, o que transparece na superficialidade destas palavras é precisamente o que mais chama atenção no filme de Tom McCarthy: a sua notável clareza e objetividade no relato, permitindo que especialistas e leigos nos meandros do jornalismo compreendam, sem maiores dúvidas, cada acontecimento encenado. O que está em evidência na fala de Glória Pires reverbera em relação a Spotlight desde sua premissa: trata-se, afinal, de um filme norteado por um desejo de eficiência.

Ora, eficiência não é um substantivo intransitivo. Ele exige complemento. Se algo é eficiente, necessariamente virá a questão seguinte: “Em quê?”. Num artigo sobre Hamlet, o poeta T.S. Eliot critica com dureza a peça de Shakespeare e aponta que, na sua visão, “mais pessoas tenham considerado Hamlet uma obra de arte por acharem a peça interessante do que a acharam interessante por ser uma obra de arte”. Num caso como o de Spotlight, sua explícita eficiência tende a chamar atenção para aspectos “interessantes” em pelo menos duas frentes: a denúncia aos padres pedófilos e a representação heroicizante de um pequeno grupo de jornalistas. Nesta olhada superficial, o que parece interessante no filme tem pouco de artístico.

Spotlight pode até ser “uma coreografia de esforços” e ter como grandes assuntos “a natureza do fazer” e a “paixão pela procura”, como defendeu o crítico português Luís Mendonça, em texto no À Pala de Walsh, mas estes são elementos muito mais de composição de um quadro do que de centralidade de uma estética. O filme assume uma natureza programaticamente didática ao se apresentar como o relato seco e direto das investigações dos jornalistas para desmascarar a blindagem em torno de casos de pedofilia envolvendo padres católicos numa cidade dos EUA, e a dramaturgia de Tom McCarthy se concentra na busca por resultados e na soma de informações que culminem no desbaratamento da trama sórdida. Caminhos de reforço da legitimação se acumulam, desde a cartela inicial (o indefectível “Baseado numa história real”), passando pela semelhança entre os personagens e suas contrapartes de fora da ficção e culminando nos letreiros finais, breve aula sobre o assunto do filme, com direito a listas em quatro cartelas (cada uma com três colunas de letras mínimas) de cidades onde foram descobertos casos de abuso sexual na Igreja (a saber: do Brasil estão lá registradas Mariana, Rio de Janeiro, Arapiraca e Franca).

É um cinema de prestação de serviço que se disfarça muito bem com a roupagem da alta qualidade de Hollywood, permitindo que se chegue ao fim da jornada com a alma devidamente lavada. O roteiro, adaptado de um livro-reportagem, vale-se de regras bem conhecidas de filmes do tipo: conversas por telefone, entrevistas com fontes sigilosas e a eventual dificuldade em avançar com o trabalho devido a pressões de ordem superior. A comparação com Todos os Homens do Presidente (Alan J. Pakula, 1976) tem sido lugar-comum, menos por aproximação formal do que pelo “interesse” naturalmente gerado por ambos os filmes na trama investigativa de instituições poderosas perpetrada por profissionais da informação pública. Mas o que havia de sofisticação em Pakula, no desenho de um thriller de suspense, sofre completa diluição no encaminhamento quase automático das ações e movimentos de Spotlight. A mesma distância (ou maior) é guardada de outro filme constantemente citado, Zodíaco (David Fincher, 2007), cujo universo de atenção mais amplo e a reapropriação de um imaginário dos anos 1970 (muito mais do que mera reprodução de um tempo histórico) já seria suficiente para afastar alguma relação mais direta com o trabalho de McCarthy.

Spotlight, de fato, não reivindica nenhuma herança ou qualquer genealogia que o aproxime de produções similares. Tom McCarthy é mais modesto que isso e faz um filme em tom menor, quase inteiramente de encontros e diálogos, com algumas explosões de interpretação que ilustram comentários do próprio discurso geral do filme (momento exemplar é o desabafo do repórter vivido por Mark Ruffalo, acima da calmaria regular dos demais atores e atrizes) e enquadramentos nos quais os lances de roteiro são explicitados (como na cena em que a repórter de Rachel McAdams vê crianças pedalando bicicletas na rua logo depois de ela ouvir o relato de um homem abusado quando mais jovem). O maior segredo da eficiência – aquilo que a faz bem-sucedida – é se servir da relevância e da nobreza incorruptível do gesto. Com a devida discrição, lança-se a poeira mágica nos olhos e na sensibilidade, turvando a frouxidão do conjunto e mantendo à tona apenas a destreza (eficiente) de uma peça meramente funcional e relativamente inócua.

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