Sopro, de Marcos Pimentel (Brasil, 2013)

novembro 28, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

sopro

A vitória do tempo
por Fábio Andrade

Na aparente humildade de sua armação, Sopro, de Marcos Pimentel, reserva um projeto de enorme ambição: documentar o ciclo da própria vida espelhado no cotidiano de personagens (homens, bichos, árvores, montanhas) encravados na zona rural mineira. Em seus 73 minutos, o filme abre mão de depoimentos ou entrevistas – em realidade, abre mão da palavra, por completo – para testemunhar e produzir interações entre os aspectos concretos e simbólicos das imagens que sua câmera encontra no microcosmo daquela pequena comunidade.

Esta breve descrição pode levantar uma série de suspeitas a respeito do filme. Nem todas elas serão confirmadas ao longo da projeção, mas boa parte sim. Sopro é movido por uma relação de violência natural entre os elementos em quadro (ou fora dele, nos momentos em que o som erode a imagem), algo que fica bastante claro logo em suas primeiras sequências: uma matilha de cães que se alimenta dos restos de um boi dilacerado. Essa violência, porém, é desviolentada pela placidez imposta pela quase constante impassibilidade da câmera (nem cruel, nem omissa, mas buscando conscientemente uma espécie de indiferença) – e, se for necessário fazer um estudo comparativo para compreender essa “desviolência” da imagem, basta olhar para sequência semelhante em O Intruso (2004), de Claire Denis, em que meros pedaços de carne jogados aos lobos trazem um desconforto que não encontra lugar nesta cabeça de boi decepada em primeiro plano. Filmada de maneira tranquila, sem acentos de sensacionalismo, a apreensão cultural da violência é atenuada, sem esforço, pelo próprio ciclo de sobrevivência, fazendo com que os restos do animal cumpram, ali, função tão nobre quanto qualquer outra: servir de alimento à continuidade do mundo.

Nessa primeira sequência – ou segunda, talvez… é difícil falar em sequências quando se pensa em Sopro, mas voltaremos a isso mais à frente, é apresentada a espinha dorsal (mas não a estrutura) que manterá o filme de pé. Está tudo visto, entendido, mostrado, mesmo que não dito. O que segue é pouco mais de uma hora de outras representações (algumas de notável força visual, como a montagem mais dedicada de árvores sendo balançadas pelo vento) dessa mesma compreensão do mundo: pela ação dos fenômenos da natureza (o vento, a erosão, o correr de um rio, a própria passagem do tempo) sobre os elementos da natureza (as pedras, os animais, as pessoas, as construções), cria-se um ciclo que é, igualmente, de destruição e de renovação, em uma espécie de moto-contínuo reafirmado pela polaridade familiar entre as crianças e os velhos, as sequências de abate e o parto do bezerro, a chama que se acende e a vela que se apaga, etc, etc, etc.

O leitor que fizer associações com um filme como As Quatro Voltas (2010), de Michelangelo Frammartino, será agraciado com um tapinha nas costas pela argúcia do esforço, mas Sopro há de prová-lo errado – e não necessariamente para o bem. Pois, ao mesmo tempo em que o filme italiano afirma a divisão da vida em ciclos, há uma articulação da montagem e uma subversão por dentro da estratégia de encenação supostamente “realista” dos planos-sequência que revela as calças curtas deste engodo: os ciclos – assim como a própria passagem de tempo – são uma percepção humana, logo, cultural. Essa mesma percepção foi cristalizada em um filme brasileiro extraordinário, que fazia justamente o contraponto entre a observação “documental” da vida no campo e a coreografia ritmada desse ciclo de autofagia: A Velha a Fiar (1964), de Humberto Mauro.

O reconhecimento da complexidade da convivência entre natureza e cultura é chave para o cinema justamente por ele não ser tão somente arte do espaço, mas também arte do tempo. Não há naturalismo ou tampouco aleatoriedade – todo acaso será medido, coreografado, ressignificado pela filmagem e pela montagem, no desdobramento natural de quem encontra figuras nas nuvens. “O filme não se contenta mais em conservar para nós o objeto lacrado no instante, como no âmbar o corpo intacto dos insetos de uma era extinta, ele livra a arte barroca de sua catalepsia convulsiva. Pela primeira vez, a imagem das coisas é também a imagem da duração delas, como que uma múmia da mutação” (Bazin).

Sopro se fecha em uma estratégia serialista, buscando novas imagens para um mesmo fenômeno. Em pouco tempo, o entendimento se antecipa às imagens e elas se mostram já não tão novas assim (mesmo dentro do universo do filme, uma vez que a percepção de que o ciclo da vida e da morte está impresso na natureza é mais antiga do que nossa própria ideia de História). Neste movimento, deixa-se entrever o desejo, que se esconde por trás de lábios cerrados, de congelar o instante, de manter as coisas como iguais. É, portanto, um desejo de retirar, do cinema, essa passada manca e assombrada de uma “múmia em mutação”, transformando a convivência entre instantes pregnantes e instantes quaisquer em uma reafirmação de instantes pregnantes (que, pela sucessão e reiteração, terminam por se transformar somente em instantes, quaisquer)… é o desejo de voltar o cinema à fantasmagoria fixa da fotografia, pois as imagens mentais de Sopro apenas reafirmam os mesmos sentidos – logo, se fazem imóveis. Mas as fotografias, naturalmente, encontravam na unicidade do instante uma mobilidade irrestrita, enquanto o procedimento, no cinema, termina por encerrá-lo no pior dos dois mundos. Sopro é, em realidade, uma coleção de imagens “paradas”.

É aí que o filme passa a bater cabeça nas paredes demasiado próximas de seu próprio esquema. Pois mesmo essa ideia de que “o mundo carrega sua própria representação” – não muito distante da percepção deleuziana de que o mundo é um repositório instantâneo de imagens, e basta ao olho capturá-las, recortá-las na duração – depende de articulações, de manipulações, de conexões que o filme faz sempre de maneira tímida, insegura, vacilante. Não há ritmo suficiente para celebrar ou mesmo construir a sinfonia da vida e da morte – algo sensível em obras extraordinárias, como O Homem com a Câmera de Cinema (1929) de Dziga Vertov, e Leviathan (2012), de Lucian-Castaing Taylor e Véréna Paravel, e também em filmes que resvalam na vulgaridade, como Koyaanisqatsi (1982), de Godfrey Reggio -, tampouco entrega (ou confiança) suficiente para transformar a contemplação em uma postura ativa – como em Wang Bing ou James Benning. Nem lá, nem cá, a montagem pisca como uma apresentação de slides, em um vai-e-vem de articulações que se desfazem antes de se completarem, reilustrando um mesmo sentimento de mundo sem jamais complicá-lo ou retratá-lo com inteireza. Quando vemos, pela terceira ou quarta vez, o garoto que se enterra com areia, a sensação é mais de estarmos diante (e novamente) de uma imagem desgarrada de sua sequência do que de um gesto consciente da montagem acerca da simultaneidade, a linearidade ou a circularidade do tempo, pois não é possível ressignificar o que não foi significado, angular o que não foi construído, reapreender o que não foi dado à apreensão. Não é possível dobrar a linearidade do cinema se não se trabalha a partir da sua inevitabilidade.

Nessa pulsação que é excessivamente leve para constituir um ritmo, e perceptível o suficiente para inibir o afloramento potente de sua própria aleatoriedade (algo que Brakhage fez melhor do que ninguém, reinaugurando um novo sistema de associações sempre que o espectador se aproximava de decifrar o norte de suas escolhas de montagem), Sopro não sai do estranho limbo dos filmes que parecem, ao mesmo tempo, longos demais e curtos demais. A despeito dos planos rigorosamente enquadrados e do simbolismo latente que brota das imagens feito água que surge da pedra, Sopro sofre de uma aparente insegurança de olhar incapaz de desfibrilar simbolismos ancestrais… insegurança de por que olhar, de para que olhar e, em especial, de por quanto tempo olhar.

Em sua ânsia por reafirmar uma força motriz tão essencial quanto os batimentos cardíacos (algo condensado no impulso vital de seu título), Sopro parece oferecer sempre as mesmas conexões para imagens já vistas – inclusive ao longo do próprio filme. Pode-se tentar enganar a morte, girando ao redor do próprio corpo, dando voltas no mesmo lugar… mas o cinema, arte do tempo e do espaço, só cumpre seu desígnio embalsamador se reconhecer aquilo que Bazin definia como ponto de partida em sua ontologia da imagem fotográfica: “a morte não é senão a vitória do tempo”.

Share Button