Satélites, de Leonardo Bittencourt (Brasil, 2013)

dezembro 3, 2013 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

satelites

A reversão do espetáculo
por Fábio Andrade

Satélites é a organização de um registro em múltiplas câmeras de um jogo de futebol – mais especificamente, o segundo jogo da final entre Flamengo e Vasco, na Copa do Brasil de 2006. A proposta, naturalmente, gera algumas dúvidas: quando a televisão espetacularizou ao extremo sua capacidade de registro (seja de um jogo de futebol, de um desfile de escolas de samba ou da implosão do viaduto da Perimetral), que olhar específico pode trazer, ainda hoje, o cinema para estes mesmos eventos? Em época de abundância de gruas, microcâmeras e super slow motion – isso para não falarmos nos iPads, iPhones e câmeras em HD que se esparramam pelas arquibancadas – o que podem as câmeras mini-DV de Satélites?

A primeira decisão sábia do filme vem de justamente não mostrar (quase nada do) o jogo. Trata-se de um filme não só do contracampo do jogo, da torcida, mas também do entorno, o grande formigueiro que dá sustentação àquele gigantesco evento: os bastidores de uma cabine de narração de televisão; os policiais que organizam a entrada e saída dos torcedores; os flanelinhas que improvisam um trabalho ao redor do estádio; os fotógrafos esportivos que buscam a melhor imagem à beira do comum; os vendedores de bebida que se espremem por entre os torcedores nas arquibancadas do estádio. Como fez, em chave diferente, Adirley Queirós em seu Fora de Campo (2009), Leonardo Bittencourt escolhe para seu Satélites o caminho até certo ponto natural de documentar o que a televisão tende a não mostrar – a não ser em matérias especiais, devidamente desconectadas do jogo em si. Com isso, porém, consegue algo um tanto distinto do filme de Adirley, cujo interesse pelas bordas reafirmava uma mesma idéia de centro: ao desistoricizar a unicidade do evento (o jogo), mantendo apenas as reações, o Maracanã se torna também uma espécie de continuação do Coliseu, em uma linhagem das pulsões da platéia. Não é, portanto, questão de se voltar para o entorno, mas de deslocar, de fato, o centro de atenção. Pela supressão aparente da História, chega-se à (outra) História, de fato. Nesse sentido, o filme mais próximo de Satélites talvez seja Terras (2009), de Maya Da-Rin, embora na superfície eles não pudessem ser filmes mais diferentes. O que os dois partilham é um certo rastreamento ontológico do que faz o comum, de encontrar no presente os traços (modificados) de uma pulsão imemorial (no caso do filme de Maya, uma questão linguística; aqui, quase um estudo comportamental, à David Attenborough).

Antes de avançar, é preciso corrigir logo o tempo verbal do parágrafo anterior, pois, neste ínterim entre a filmagem e a exibição, Satélites se tornou um filme sobre um mundo que não existe mais, um registro histórico sobre uma realidade que, embora passada há exatos sete anos, já se transformou por completo – algo que reforça seu caráter científico. Isso vale não só para o próprio Maracanã, que hoje já não tem arquibancadas, regulamentou os vendedores de bebidas, aumentou o número de policiais e, muito provavelmente, expurgou os flanelinhas de suas margens, mas também para a própria forma de captação do filme: as imagens em mini-DV, reforçadas pelo pillar box da captação em janela 4:3, criam um estranho e bem vindo deslocamento cognitivo a olhos hoje já acostumados ao 16:9 em alta definição. Quando cinema e TV passam a compartilhar uma limpidez do traço das imagens, um apuro de definição que torna mesmo o farfalhar de uma camisa em potencial coreografia, Satélite retoma o lado ruidoso da imagem e do jogo, restaurando a sensação – muito palpável, para quem foi ao Maracanã em sua época mais desregrada – de que, a qualquer minuto, tudo pode fugir do controle. O que mantém a ordem é a mise en scène do próprio ritual; é ela, e não o indivíduo, que se auto-dirige.

Essa sensação, porém, é algo que o filme encontra com maior plenitude sempre que se desvencilha dos personagens e mergulha na zona de indistinção maior que são as próprias torcidas. Embora existam personagens claros ali, é quando o filme vai para as arquibancadas do Vasco e do Flamengo que essa sensação de ser parte de algo que transcende o sujeito – igualmente presente na policial, no fotógrafo e na vendedora (mas não no flanelinha ou na cabine de comentaristas, o que é um paralelo bastante interessante entre diferentes individualizações e que ganha síntese no longo plano em que a câmera acompanha uma caminhada do flanelinha, ouvindo a voz do locutor – um outro, mas o mesmo – no rádio) – se torna mais forte e recupera algo de tribal, de comunitário, que marca a relação com o time. Aí o filme encontra um dos seus trunfos mais palpáveis, que está justamente em captar o lado ritualístico (um filme etnográfico?) da relação com o futebol. Isso se expressa na torcida com maior inteireza (embora exista um plano extraordinário da coreografia de câmeras dos fotógrafos acompanhando um lance que não vemos) justamente por, ali, o desejo de dissolução no todo ser voluntário, e não parte de um movimento opressivo maior (o capitalismo, enfim) sobre os corpos. Satélites é bastante preciso na forma como recupera a sensação de presença, reavivando no espectador uma memória física (para quem já foi a um estádio) ou permitindo o contato com algo que lhe é desconhecido e, por isso mesmo, em parte fascinante, em outra, assustador.

É nas arquibancadas, também, que o filme consegue seus procedimentos mais expressivos. Surge, ali, uma série de imagens surpreendentemente incomuns para um esporte tão ostensivamente televisionado (os planos em que a câmera é coberta ou descoberta pelo bandeirão da torcida são especialmente potentes como propostas de imersão), graças ao acesso “mosca na parede” que o anonimato da enunciação traz. Em seus melhores momentos, Satélites consegue também se jogar, voluntariamente, neste processo de auto-diluição em uma massa (visual, sonora, simbólica) maior do que o ponto-de-vista, distanciando-se do documentário de personagem e do “filme de olhar”, e relocalizando o cinema, também, como parte deste fluxo despersonalizado, desta grande massa de interação cultural. Com isso, o filme recupera de maneira notável a força de alguns procedimentos cinematográficos tradicionais: existem maneiras eficazes de se explicar o que é um plano e um contraplano, mas no Brasil poucas carregam esse sentido de forma tão imediata quanto cortar da torcida do Flamengo para a torcida da Vasco (operação constante no filme que rende preciosas piadas de montagem).

Nesta reconstrução de atmosfera, há, porém, limites que o filme não conseguirá transpor – dos quais não alcançar os 90 minutos de uma partida é o sintoma mais objetivo. Satélites nem sempre consegue impor variações fortes o suficiente para renovar essa sensação de presença, e aí as fugas para o “documentário de personagem” se tornam escapadas necessárias que contrariam a lógica de imersão na torcida (ou seja: rompem com a estrutura do filme), mas que ao mesmo tempo lhe dão possibilidade de se reafirmar, mais à frente. É uma ironia, pois, se o recorte do filme transforma o jogo de futebol em um evento irrepetível (não é possível voltar em outro jogo e fazer um segundo take, ao menos não sem criar uma contradição interna), a atenção dedicada a este contraplano por vezes parece reconhecer que esse outro grande espetáculo que o filme olha não se dá sem redundância, sem a repetição de gestos, coros e cantos, que definem aquele espaço como uma arena de ritos (e, logo, de repetições).

Mesmo com esses percalços – até certo ponto, consequências naturais de um filme com um dispositivo tão demarcado (um jogo, X câmeras, um tempo determinado de filmagem) –, Satélites consegue reconciliar em grande medida o cinema com uma das principais paixões brasileiras, algo surpreendentemente raro na filmografia nacional (quantos Pelé Eterno existem para cada Garrincha, a Alegria do Povo?). Isso só é possível por o filme nunca deixar de ser cinema e, justamente por isso, ter a inquietação original de buscar a cena (o futebol) onde ela realmente ainda pode se mostrar como nova. Para lidar com uma realidade tão filmada, às vezes é necessário ao cinema virar a câmera no sentido oposto de onde as coisas aparentam estar.

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