Rumo a Madri (Vers Madrid), de Sylvain George (Espanha/França, 2012)

outubro 22, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

rumoamadri

A existência como política
por Filipe Furtado

“Critica política concebida como uma solidariedade internacionalista das diferenças individuais, nas quais a sombra mais anônima e discreta é mais importante para a história do que o líder mais poderoso – em oposição ao internacionalismo clássico marcado pela hierarquia partidária. Significa que todos são politicamente responsáveis. (Incluindo você ser responsável se você não faz nada.) Significa também que o cinema, como uma arte figurativa, é especialmente capaz de lidar com a equanimidade das sombras”.

Nicole Brenez

A pulsão no centro do cinema de Sylvain George pode ser encontrada já no título do seu filme mais famoso, Que Eles Descansem em Revolta (2010): o paradoxo que reforça um desejo de alerta, uma ênfase num corpo de resistência. Pois todo o desejo de George é justamente buscar em meio as sombras uma representação possível para um estado de resistência. Rumo a Madri se move da questão do imigrante, corpo fantasma por excelência da Europa contemporânea, que dominava seus filmes anteriores, para a dos movimentos sociais, no caso buscando realizar uma crônica sobre o Movimiento 15-M, cujas manifestações marcaram a Espanha entre 2011 e 2012. Por cerca de duas horas e meia, Rumo a Madri se dedica a registrar os protestos do 15-M, os longos discursos, os lugares por onde ele passa, as discussões ideológicas entre os manifestantes, os vários rostos que dali tomam parte. É um filme muito longo justamente porque a sua urgência pede que ele assim seja. George é um excitante diretor de agitprop e, paradoxalmente, por causa da sua paciência, os vários tempos mortos do filme aos poucos vão se reunindo num retrato maior e urgente.

Rumo a Madri é, na sua essência, um filme de rostos. O estilo de Sylvain George, com a sua fotografia em preto e branco marcante e um olhar rigoroso na construção de imagens pouco esperados num documentário realizado no centro da ação, é uma arte da permanência. O que o filme deseja é justamente resgatar suas figuras da abstração violenta da linguagem do grande noticiário e devolvê-las uma existência e especificidade próprias. As imagens de Rumo a Madri revelam uma grande fisicalidade, um desejo constante de cada corpo em se afirmar, em existir no seu estado de revolta. O cinema é uma arte de grande potencia política justamente porque suas imagens são, por princípio, concretas. A força de Rumo a Madri brota de fazer valer esta afirmação. É um filme construído sobre a distância entre câmera e manifestantes e do diálogo que permite estabelecer entre eles. As imagens descobrem aqueles corpos e, para a força política do filme, este movimento basta.

Não é acidental que, em contraste com boa parte do cinema pseudo político que vemos por ai, o cine-jornal de George recusa organizar as suas informações num discurso onisciente. Fazer isso, afinal, seria se aproximar da linguagem do inimigo e dar continuidade por outros meios ao discurso oficial já tão bem representado na grande imprensa. Pelo contrário, no seu olhar, cuja presença concreta de corpos e espaços se impõe sobre a informação, Rumo a Madri localiza um análogo para a forma que um movimento como M-15 se expressa. É um filme que tende a decepcionar quem for até ele na expectativa de encontrar ali explicações e informações; se Rumo a Madri comunica algo, é o sentimento explicito no seu subtítulo – the burning bright!: a organização das suas imagens existe em função de afirmar um desejo de resistência.

Poucos momentos do cinema recente chegam com tanta força como aquele que substitui o preto e branco elaborado de George enquanto a policia desce a mão sobre os manifestantes. Todo um projeto estético cuidadoso é interrompido por uma questão prática – George não se encontrava em Madri quando a chefe de policia local resolveu por fim reprimir com mais força os manifestantes. A violência da policia surge também em uma ruptura estética com a pobreza das novas imagens, interrompendo o filme de George, sem fazer, com isso, que ele sacrifique sua urgência.

A partir dali, Rumo a Madri muda o tom do registro: sua parte final tem ao mesmo tempo um tom mais confrontador e melancólico. Os planos de George se adaptam a um espaço marcado pela violência – mais movimentos de câmera, cortes abruptos sem o mesmo controle de ritmo de antes – e a negociação com corpos se torna mais dura. Se a figura dos policiais já surgia nas primeiras partes do filme sempre com um peso muito grande, isto se torna mais evidente nas sequências finais, como vultos em negro que cortam o quadro prontos para baixar o cassetete sobre os manifestantes. Mesmo aqui, o principio que guia o filme segue o mesmo: sua força politica é uma questão de presença.

Assistir a Rumo a Madri no contexto brasileiro atual não deixa de ser uma experiência ainda mais forte, já que os paralelos com os protestos recentes, sobretudo os das últimas semanas no Rio de Janeiro, é inevitável (e, neste sentido, não deixa de ser uma pena que o filme seja exibido na Mostra e não no Festival do Rio, onde teria um eco político ainda mais forte). Há sobretudo um paralelo inevitável nas sequências finais com a violência do discurso oficial com os mesmos termos (“o direito do cidadão de ir e vir”) e os mesmos atos (adaptações abruptas de lei) retomados em outro espaço, mas com o mesmo sentido repressor.

Este poder ressoante faz bastante sentido, já que o desejo de Sylvain George é justamente partir da força da presença do M-15 para dali encenar a crise da Europa e, no processo, encontrar uma possível saída politica-estética. A grandeza de Rumo a Madri é achar uma existência vibrante em meio à penumbra.

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