Retribution e Loft: a seca e a enchente criativas de Kiyoshi Kurosawa
julho 16, 2013 em Em Pauta, Rafael C. Parrode
por Rafael C. Parrode
A despeito de toda a sua versatilidade enquanto diretor que já explorou os mais diferentes nichos do cinema – do pinku aos filmes de gângster, dos policiais e filmes de investigação aos dramas existências –, Kiyoshi Kurosawa se tornou conhecido mundo afora especialmente por seus trabalhos voltados para o gênero horror, embalados pela onda dos filmes de fantasmas japoneses que moldaram o subgênero do j-horror no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, e que foi explorado por tantos outros diretores como Hideo Nakata (Ringu, de 1998 e Dark Water, de 2002), Takashi Miike (Audition,1999), Takashi Shimizu (Marebito, 2004) e Sion Sono (Suicide Club, 2001). É perceptível certa irritação por parte de Kiyoshi Kurosawa diante de rotulações sugeridas em entrevistas, principalmente tendo ele já provado o contrário ao realizar filmes tão deslocados desses gêneros, como Licença para Viver (1998), Carisma, Barren Illusions (ambos de 1999) e Água Viva (2003). Esse esgotamento diante de uma classificação simplista de seu trabalho – exatamente quando o que ele quer é diluir e romper as fronteiras dos gêneros – somado às dificuldades cada vez maiores de se encontrar financiamento para seus filmes conduzem Kurosawa a uma crise, na metade da década de 2000.
Essa crise, que já vinha sendo desencadeada desde Doppelganger (2003), chega ao limite quando Kiyoshi começa a escrever o roteiro de Loft (Rofuto, 2005) ao mesmo tempo em que recebe a proposta de dirigir um filme de encomenda para uma série do selo J-Horror Theater – na qual o produtor Takashige Ichise reúne seis dos principais diretores que definiram o gênero nos anos 2000, para a realização de novos filmes – e começa a roteirizar os dois filmes de uma só vez. Retribution (2006) nasce assim, como uma espécie de tomada de consciência de seu trabalho, de um revisionismo de sua carreira e de um acerto de contas, enquanto que Loft é um exorcismo disso tudo. Ambos os filmes são agora, para Kurosawa, a última chance de destrinchamento de possibilidades de se trabalhar com gêneros a partir do horror, amalgamando-os e fagocitando tantos outros elementos, impregnando seu DNA de genes que metamorfoseiam seus filmes a todo tempo, impedindo-nos de defini-los.
Em sendo Retribution (único filme do diretor lançado em DVD no Brasil, com o título Vítima de Uma Alucinação) um filme de encomenda – no qual Kiyoshi precisa trabalhar com elementos reconhecíveis deste universo de gênero que, a despeito de tudo, ele ajudou a construir –, ele parece retomar uma série de questões e personagens de outros filmes para ressignificá-los dentro de uma outra narrativa, como se eles mesmos vivessem tantas vidas em tantos outros universos, de maneiras tão distintas, mas ainda permanecendo almas atormentadas vagando em busca de respostas em um mundo sem lógica. Kôji Yakusho retorna mais uma vez como um policial que investiga crimes em série e acaba lidando com fantasmas do passado que voltam em busca de vingança. É uma premissa que Kiyoshi desconstrói desde Door 3, de 1996, e é retomada de maneiras distintas em filmes de maior prestígio como Cura (1997), Carisma (1999), Sessão Espírita (2000) e Pulse (2001).
Retribution é, portanto um filme de revisão, ao mesmo tempo em que é também um filme em que o diretor reconfigura essas peças reconhecíveis, construindo uma espécie de genealogia de seu trabalho, e que sintetiza muito bem toda uma obra. Kurosawa, como sempre, continua lidando com questões sociais prementes do Japão contemporâneo; entretanto, desta vez, mais do que em qualquer outro de seus filmes, a investigação sobre essa nação se dá mais a partir dos espaços, da cidade, de um lugar específico em Tóquio que carrega estigmas de um passado recente, e que atormentam as personagens. São a dureza e a devastação daquele espaço os motivadores dos comportamentos que desencadeiam a violência perpetrada ao longo do filme.
O cenário é o da área portuária de Tóquio, que – mal projetada e construída, e após sucessivos terremotos – transformou o lugar num grande pântano, movediço, onde prédios antigos agora precisam ser desabitados para dar espaço a novos. No meio deste lugar está um rio, local de fluxo que possibilita um ponto de vista privilegiado, onde navega uma barca que, num dado momento, carregou aqueles personagens que se furtaram a olhar, a enxergar, intervir e resgatar aquele espaço, e anos depois precisam lidar com as reminiscências desta omissão. O mal aqui (tal como em Cure) é contagioso, nasce de uma imagem – que é a da mulher de vermelho, a própria representação imagética desse passado afogado pela água salgada que invade aquele lugar. Todo esse cenário, entretanto, é construído através da subjetividade, de um recorte psicológico das personagens acerca da apreensão do espaço e do tempo. A partir disso, Kurosawa cria um mosaico sombrio, escuro quase negro, onde a falta de luz impede as personagens de ver e reagir. São os fantasmas que nos impelem a ver.
Há, tanto em Retribution quanto em Loft, uma sublimação das leis da lógica e da racionalidade que atingem níveis de subjetividade monstruosos, em nome dessa legitimação de um universo de cinema que assume o absurdo como parte da tentativa de construção do simulacro. Ainda que em Retribution essa radicalização se dê de maneira um tanto sutil, operando sempre num terreno mais confortável, já muito cartografado por Kiyoshi, é uma operação que se dá numa lógica de esgotamento desses elementos inteligíveis em sua filmografia. A radicalização da subjetividade nos remonta ao conceito de imagem-tempo de Gilles Deleuze, estruturado a partir das ideias de “duração” e “intuição” defendidas por Henri Bergson: duração enquanto “tempo vivido”, uno e interpenetrado, momentos temporais que, reunidos, dão conta de um todo; e intuição enquanto experiência metafísica, de apreensão direta da realidade sem a utilização de ferramentas lógicas do entendimento.
Se Kurosawa trabalha com esses conceitos ao longo de toda a sua filmografia, e redimensiona-os em Retribution para reposicionar os elementos que ajudaram a construir o seu próprio universo de cinema, em Loft, esses conceitos são amplificados e elevados à última potência. Trata-se de uma das experiências mais radicais de Kiyoshi Kurosawa.
É interessante como, sendo roteiros escritos ao mesmo tempo, é possível perceber como eles lidam com oposições claras, tanto estéticas quanto narrativas. Loft é exatamente a válvula de escape para lidar com as limitações impostas sobre Retribution, a começar pela mudança da cidade para o campo, e da noite para o dia, resultando em um filme extremamente branco e solar. Por isso é notório que Loft seja um filme de exorcismo desses fantasmas e empecilhos estéticos: enquanto Retribution é uma implosão, Loft é a explosão que conflagra, que infla e desintegra todos esses elementos reconhecíveis, dando forma a uma espécie de monstro.
Em Loft, há um aprofundamento de conceitos e de escolhas da mise en scène, da direção de arte e da montagem, além é claro das subversões narrativas que nos colocam numa espécie de encruzilhada. Afinal, como se catalogar um filme como este? Existe mesmo um gênero para defini-lo? Kurosawa nos dá uma rasteira. Pois se, num primeiro momento, lendo a sinopse, temos a impressão de estar indo ver um filme de terror sobre múmias, logo todas essas expectativas são desmontadas a partir da rarefação dos elementos narrativos e dos tempos, retirando qualquer possibilidade de definir o filme como algo opaco e uniforme.
Esses elementos de desprendimento da lógica são construídos desde a fotografia que, junto à direção de arte, ressalta os filtros dos vidros, as transparências e os reflexos, ressignificando-os para promover a fabulação dos espaços e dos tempos, até aos elementos narrativos que se metamorfoseiam o tempo todo, remodelando sua relação com os gêneros. O mesmo acontece na montagem, que fragmenta planos-sequência longos, nos propondo uma desorientação espacial do tempo.
Mas é o trabalho na narrativa e nos moldes com que ele a formata que fazem de Loft um grande e estranho filme. Se é patente desde os primeiros filmes de Kiyoshi Kurosawa essa tentativa de diluição de vários gêneros num mesmo caldeirão para, a partir dali, reinterpretá-los em chaves bem mais complexas, aqui ele adiciona novos elementos e nuances que subvertem esse gesto: a despeito de Loft flertar com os filmes de múmia, de ser existencialmente um drama psicológico ao mesmo tempo que uma história de fantasmas, e ainda se colocar como uma radiografia de um romance frustrado, ele adorna todas essas premissas de uma maneira quase que tarkovskiana, trazendo fundamentos psicológicos tipicamente hitchcockianos (sutis citações a Os Pássaros, Janela Indiscreta e Vertigo povoam as narrativas de ambos os filmes), e buscando também elementos de uma construção documental do processo criativo do próprio Kiyoshi, e que diz muito sobre o que é este filme.
Nesse sentido, é central dizer que Loft foi todo filmado com duas câmeras: uma HD e outra miniDV (cujas imagens Kurosawa só foi ver durante a montagem), que era sempre posicionada atrás da câmera principal, capturando um ângulo completamente diferente da outra, uma espécie de registro do registro. Kurosawa justificava o procedimento dizendo que a câmera principal filmava uma ficção enquanto a segunda, um documentário. As quebras que essas imagens granuladas, que distorcem a “realidade” da ficção, provocam no filme acabam revelando essas fissuras de um processo criativo que está ali, registrado na tela. Afinal, a crise de Reiko ao escrever seu novo romance é a mesma crise pela qual passa Kurosawa ao escrever o roteiro de Loft, sugerindo que ele esteja, ali mesmo, pintando uma espécie de autorretrato. Não à toa, existe ali a figura de um editor que pressiona Reiko para que ela lhe entregue logo o seu romance pronto, ameaçando para tanto, lhe tirar a vida.
Ao final, é surpreendente perceber como ambos os filmes parecem se completar e se conectar de tantas e diferentes formas, num embate franco e revelador. Se há, em Retribution, uma perspectiva distanciada do diretor em relação ao seu trabalho, e em Loft uma paixão pelos excessos e pela necessidade de se colocar em xeque, ambas as experiências revelam acima de tudo um cineasta intrincado, que redimensionando as formas do espaço e do tempo, nos diz muito sobre os lugares mais recônditos da condição humana.
Em determinado momento, um dos personagens revela então a natureza essencial de Loft (e de todo o cinema de Kurosawa): ao assistirem a um filme antigo sobre experiências realizadas por cientistas com a múmia eterna, Reiko pergunta a seu amigo o que são aquelas imagens que distorcem o tempo de uma maneira tão perturbadora. Ele responde então que essa é uma técnica usada para observar algo por um tempo muito prolongado e serve para se vigiar e detectar anomalias. É uma bela síntese do cinema do próprio Kurosawa.
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