Quando Eu era Sombrio (I Used to be Darker), de Matthew Potterfield (EUA, 2013)

outubro 12, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

iusedtobedarker

O lado escuro da vida
por Fábio Andrade

“I used to be darker, then I got lighter, then I got dark again”.

Bill Callahan – “Jim Cain”

Logo no começo de I Used to be Darker, Taryn (Deragh Campbell) chega em casa com uma sacola da farmácia, vai até o banheiro e, de costas para a câmera, abre o pacote que trouxe da farmácia. Mais tarde, muito mais tarde, quando todas as questões do filme já parecem ser outras, Taryn conta para sua tia (Kim Taylor) que acha que fez um teste de gravidez e que ele deu positivo. É provável que, dentro desta sacola de farmácia que aparece nos primeiros minutos do filme, estivesse a caixa com o teste de gravidez, mas naquele primeiro momento não é possível ir além da simples intuição quanto ao significado do pacote e de sua influência em tudo que veremos depois. A abertura dessa caixa (de Pandora?) de papelão é o mecanismo que coloca o filme em movimento, mas o determinante aqui é a forma como Matthew Potterfield nos mostra, ou deixa de mostrar, essa ação crucial: Taryn encobre essa revelação crucial com seu corpo, virado de costas para a câmera. É importante que certas revelações sejam mantidas irreveláveis.

Esse gesto – um ator de costas para a câmera; ou, melhor, uma câmera que filma um ator dando as costas para ela – é um traço que I Used to be Darker reitera e reitera e reitera, diversas vezes, ao longo do filme. Não estamos, porém, diante de uma regra rígida de encenação que se expõe como sistemática, tampouco estamos na facilidade dos planos de nuca que se tornaram tão recorrentes no cinema contemporâneo… diferente, esse gesto de virar as costas para a câmera – e de o diretor posicionar a câmera de maneira a permitir esse ocultamento – reaparece com a sutileza de algo que não se quer fazer notar, de um resguardo de intimidade das personagens diante do olho aparentemente devassador do cinemascope. O gesto, porém, não é confrontado ou desafiado pela câmera de Potterfield; ao contrário: sua atenção recai justamente na reiteração dessa leve recusa, desse espaço conservado pelos personagens da zona-que-tudo-vê da ficção. É, portanto, o espaço da modernidade diante da impressão de totalidade do clássico.

Daí se explica, no texto, a insistência no título em inglês, porque ele dá conta de uma sutileza que foi perdida na versão em português: darker – não exatamente “quando eu era sombrio” (o filme não é sobre esse momento anterior – muito pelo contrário – embora esse momento anterior ronde tudo que vemos em tela), mas a constatação de que já se foi mais sombrio e não se é mais (até não se sabe quando). “I used to be darker, then I got lighter, then I got dark again”. Essa gradação expressa no título traz a dimensão do devir constante dessa zona escura para a qual as personagens se voltam de quando em quando, nesse instinto de proteção que resguarda certo mistério e do qual o gesto de virar as costas é apenas uma expressão. É um sufixo de comparação que expressa sobretudo uma apreensão de tempo, de recorte das ações em uma duração que transborda o que vemos em tela e que, ao mesmo tempo, realça o quanto toda ação ali é condicionada por um “antes” dessa mesma escuridão, igualmente por um fora-de-campo e por um fora-do-tempo do filme – e os momentos em que I Used to be Darker se revela menos interessante é justamente quando ele é mais literal, quando se curva à falsa impressão de necessidade de trazer para o quadro essas forças que já agiam, de maneira muito mais forte e misteriosa, ao redor dele (uma frase explicativa no meio de um diálogo; um empurrão em uma festa que antecipa um acesso de raiva que seria tão mais forte se não antecipado – imagine o que Taryn faria com aqueles quadros feios pendurados na parede se já não tivesse liberado parte da raiva empurrando aquele que provavelmente é o pai de seu filho?).

Essa é uma relação que se dá, também, do filme com sua posição na história do cinema e com as tendência de catalogação crítica de transformar toda repetição de padrões em um gênero. Se, em um primeiro momento, I Used to be Darker parece ser apenas mais um filme independente americano como tantos outros, aos poucos essa infiltração de escuridão (muito mais escuro ou pouco mais escuro, tanto faz; mas mais escuro, certamente; mais) é o que o calca em diferença. Pois, se, por um lado, o cinema americano independente que mantém certa filiação a uma tradição narrativa (de Cassavetes ao mumblecore; de Larry Clark a Kelly Reichardt) sempre teve como virtude uma reaproximação da naturalidade da vida (e somos lembrados disso aqui por alguns personagens que conservam os nomes reais dos atores – mas não todos, diferença essencial), o limite dessa estratégia ficava clara nos filmes (piores) que começavam a se parecer demais com a vida, de se parecer tanto com a vida que deixavam de ser filmes (e há críticos e críticas que podem louvar essa indistinção, mas não aqui, não agora, não nesta crítica). Essa zona escura em I Used to be Darker é justamente o hiato entre a vida e a ficção, o recorte que necessariamente esconde algo, que parcializa uma experiência, mas que encontra potência dramática justamente nessa parcialidade, nessa vontade de compartilhar sua incapacidade de tudo ver (questão crucial, a rigor, para o cinema moderno). Desse hiato, ressurge o drama – reafirmando a tendência crítica americana (Clement Greenberg) de ver o modernismo como uma continuação do clássico, não como uma ruptura.

Daí surge o drama, pois não é apenas Taryn quem vive uma zona escura – inclusive por a gravidez ser apenas uma pontuação em um drama muito maior que se dá fora do alcance dos olhos. Todas as personagens do filme vivem oscilação semelhante entre a inevitabilidade da transparência e o desejo de uma opacidade. Nesse sentido, é interessante como os atores oscilam entre uma tipificação mais estreita e uma quebra dessa mesma tipificação: Bill (Ned Oldham) pode subitamente abandonar seu disfarce (tão verdadeiro quanto sua identidade real) de proto-Al Bundy e libertar, de maneira sutil e natural, o roqueiro latente que adormecia em algum lugar do passado (a silenciosa complexidade da cena da filha adolescente que vê o pai cantando – para a mãe? – “Don’t want to fuck you anymore” no porão de casa e sabe que aquele é o mesmo pai que paga o plano de saúde e mantém a casa em ordem; ou a balada triste que termina com o violão sendo destroçado contra a pilastra, não de um palco, mas de um porão sem platéia, o porão mais íntimo de que se tem notícias); Kim (Kim Taylor) muda, de uma cena para outra, da mãe que sofre com o abandono da filha para a mulher que trocou o marido bacana por um garoto que não perde a primeira chance em pegar sua sobrinha e que se coloca como imagem e semelhança de tudo que Bill abandonou para que a mulher pudesse seguir com sua carreira de compositora mal paga (e como a relação dela com Bill vai de extremos de maturidade a minúsculos jogos de poder que os devolvem à puberdade, mas que parecem sempre legítimos, sempre compreensíveis em sua espontaneidade e perdoáveis seu reducionismo); Taryn foge dos pais, mas de repente se permite surpreender com a descoberta de que sua mãe um dia foi punk e dirigia carros de corrida, folheando um velho álbum de retratos com a tia; Abby (Hanna Gross) consegue ir da impressionante bolha de intensidade dramática que se instala com o acender de um refletor no palco de um teatro até um chilique bobo por uma chapa de waffles (que não é exatamente por uma chapa de waffles) – e, no momento seguinte, explodir com a prima por ela não ter ligado para os pais, sem que a conexão entre as duas coisas jamais de torne transparente, pois as conexões são dela, todas dela, e o filme manterá as coisas dessa maneira, em conflito, mas separadas, cada qual em seu lugar.

Há todo um jogo de ocultamento e de revelação mediando as relações de I Used to be Darker, sejam elas entre as personagens (um simples “did you talk to him?” falado na cozinha dispara uma série de indagações no espectador – ele quem? Falou sobre o que? O que havia para ser falado? Qual a influência deste assunto e deste “ele” em tudo que vemos? São todas perguntas que o filme jamais responderá) ou com o próprio espectador, como no misterioso som de guitarras que ouvimos durante o show de uma banda sem guitarras, ou na canção de Bill Callahan que, apesar de ter servido como inspiração inicial para o filme, toca apenas ao fundo, quase ininteligível, no outro ambiente de uma casa de show, enquanto as personagens conversam no camarim. Mais do que inventariar modulações de um mesmo sentimento, o que Matthew Potterfield faz é usá-las como catalisadores e mediadores da convivência, pois conviver é difícil e a permanência inevitável dessas zonas escuras está próxima à raiz dessa dificuldade.

Mas qual a distância entre essa afirmação de que “conviver é difícil” e os filmes que se “parecem demais com a vida”? A distância é que a complexidade está justamente nessa ambiguidade de apreensão, na negação da tentação em simplificar o que não é simples, pois está sempre ligado às particularidades de um olhar. Nesse momento, I Used to be Darker reivindica um trecho de “A República”, de Platão, com bastante propriedade (e é sempre bonito quando filmes que gostamos remontam a ideias que gostamos, mesmo que sejam novos filmes e outras ideias, mas o novo do filme ajuda a tornar a ideia novamente outra, nova): “Os objetos que não convidam o espírito à reflexão são todos aqueles que não conduzem simultaneamente a sensações contrárias; os que conduzem, coloco-os entre os que convidam à reflexão, sempre que a sensação, quer venha de perto, quer de longe, não põe em evidência se se trata de um objeto, se do seu contrário. (…) Ora, não é forçoso que, em tais circunstâncias, a alma fique perplexa ante o significado de uma sensação de dureza e de moleza do mesmo objeto, e bem assim da de leveza e de peso, sem saber o que é a leveza e o peso, uma vez que o que é pesado mostra ter também leveza, e o que é leve, peso?”. Se Platão vem à cabeça, vem também sua apreensão da representação como uma tentativa de se aproximar dos entes, da coisa em si, do que simplesmente “é”. A distância entre as dificuldades da convivência que se esparramam ao longo de I Used to be Darker e os filmes que se “parecem demais com a vida” é que, por essas dificuldades (essa complexidade que convida à reflexão), I Used to be Darker deixa de parecer e alcança a potência do ser, de quando o cinema simplesmente é como a vida.

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