Planeta Escarlate, de Dellani Lima e Jonnata Doll (Brasil, 2016)

fevereiro 7, 2016 em Cinema brasileiro, Coberturas dos festivais, Em Campo, Marcelo Miranda

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Na essência das coisas
por Marcelo Miranda

Uma breve olhada na filmografia de Dellani Lima permite detectar um crescente caminhar em busca de uma dramaturgia da essência e da centralidade. Se filmes como Sobre o Amor em Tempos Difíceis (2004) e O Céu Está Azul com Nuvens Vermelhas (2006) tinham por maior característica a completa fragmentação de planos, corpos, situações e o aparente desinteresse num núcleo específico de ação, projetos mais recentes como O Tempo não Existe no Lugar em que Estamos (2015) e Trago seu Amor (2015) apresentam a proposição de um cinema menos aberto e mais direto – ainda rarefeito e disperso, sim, mas, acima de tudo, muito mais construído e controlado na busca por elementos de dramaturgia e encenação. O despojamento e o descompromisso com “agendas culturais” ou modinhas segue uma marca forte na obra de Dellani, mas a mudança estética dos últimos anos quase grita neste novo Planeta Escarlate.

O filme é possivelmente o mais contido e delimitado já feito pelo realizador. Dividir a direção com Jonnata Doll (protagonista do extraordinário Aquele Cara, curta-metragem de Dellani de 2013, e autor do conto que originou este novo projeto) pode ser influência direta, mas não explica tudo – e é bom que seja assim. Planeta Escarlate se alinha aos dramas em que a rotação ou proximidade de planetas ou asteroides coloca a Terra em risco. Recentemente (curiosamente, num mesmo ano), a premissa gerou trabalhos de estímulos variados, desde as megalomanias visuais de Lars Von Trier em Melancolia (2011) ao encontro entre amigos para instantes de lazer em Estado de Sítio (feito por um coletivo de diretores de Minas Gerais em 2011), passando pela abordagem mítico-existencial de 4:44 – Último Dia na Terra (2011), de Abel Ferrara. Em todos, a iminência de um fenômeno interplanetário afetava diretamente o comportamento das pessoas, liberando sentimentos, angústias e reações até então canalizadas por outras vias.

No caso do filme de Dellani e Doll, o casal protagonista viaja da cidade para o interior no intuito de ficarem juntos, enquanto ele se recupera de traumas envolvendo abuso de drogas e a morte de uma ex-namorada. As tensões do filme se dividem entre o relacionamento do casal (vivido por Laila Pas e pelo próprio Jonnata Doll) e a presença de dois caseiros que surgem como ameaças em potencial. Os tais raios vermelhos do misterioso planeta a se aproximar da Terra têm o poder de alterar o comportamento de qualquer pessoa não-indígena (um chiste ao mesmo tempo irônico e engajado) e gerar efeitos de esquizofrenia e paranoia. Estas informações são apresentadas dentro do filme através de uma transmissão radiofônica, como também o são no citado Estado de Sítio e em outro flerte com certo apocalipse das relações em Com os Punhos Cerrados (2014), dos Pretti & Parente: o rádio como meio de informação dos ambientes isolados ou ocultos, quase a última relação possível com o mundo lá fora e deixado para trás, um fiapo de conhecimento que resiste ao fim dos tempos anunciado.

Planeta Escarlate se alimenta, então, da ficção científica e também dos climas de opressão relacionados a filmes também de isolamento com ameaças de violência, em especial surgidos no cinema americano dos anos 1970, como Sob o Domínio do Medo (Sam Peckinpah, 1971) e Aniversário Macabro (Wes Craven, 1972), nos quais a busca pelo bucólico não livra as personagens da destruição da carne. Até pelo contrário: a natureza que pode salvar é a mesma que pode condenar; uma coisa nunca estará desvinculada da outra, na medida em que a presença do homem altera a relação com esta natureza. Enquanto ambiente isolado, os espaços são seguros; no instante em que eles são ocupados pelo humano e forçadamente alterados apenas pela presença de outros, já não se pode mais prever nada como antes. O ciclo da vida vira ciclo da morte. Planeta Escarlate tem o subterfúgio da premissa dos raios vermelhos, mas o que sua narrativa carrega é outra construção do mundo como lugar perigoso, sem saída, desiludido.

Estas são questões a permear a superfície do filme, e a facilidade como podemos transitar por elas diz muito do tipo de cinema aqui tentado por Dellani Lima e Jonnata Doll. Planeta Escarlate sofre com desajustes de ritmo e cenas que parecem não estar plenamente estabelecidas ou finalizadas, ainda que se compreenda seus significados. Num certo sentido, tal como também no cinema de Cristiano Burlan, o filme parece registrar seu próprio processo de feitura, a tentativa e o erro, o risco e a incerteza. Nisso existe um tipo de frescor raro e bastante único, em que a eficiência plena nunca é alcançada, o que ironicamente faz o mecanismo funcionar. Planeta Escarlate se configura como proposição a um filme que existe no campo das ideias e está na tela materializado como tal. É a imagem de uma vontade de imagem (de várias vontades de várias imagens). Por se inserir em determinados códigos assimiláveis (a ficção científica, o drama romântica, o exploitation), a evidência da busca fica mais cristalina. Dellani e Doll desenham as cenas com corpos, palavras, movimentos e as possibilidades de ocupação do enquadramento. Vem daí este cinema tão estranho a eles, e também (por isso mesmo) tão fascinante nas suas contradições e idiossincrasias.

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