Palermo ou Wolfsburg (Palermo oder Wolfsburg), Werner Schroeter (Suíça / Alemanha, 1980)

maio 5, 2014 em Em Pauta, Pedro Henrique Ferreira

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Misteriosos signos do mundo
por Pedro Henrique Ferreira

O violino dodecafônico de Alban Berg se estende da sequência anterior, uma em que figura a encenação da Paixão de Cristo em um palco, e dá lugar a uma planície vazia, com alguns montes ao fundo. Uma suave panorâmica para a esquerda desloca a atenção para um homem montado em um burro. Ele está parado e olha adiante. A distância não permite distinguir mais do que sua forma na planície vazia. A panorâmica prossegue até adentrar a escuridão de uma ruína, provavelmente um casebre abandonado, e descende sinuosa até, pela moldura de uma porta, vislumbrar, à distância, uma pequena cidadela. Um zoom in se encaminha à cidadela e, durante este movimento, perscruta um grupo de crianças que, da escuridão interior da ruína, corre alegremente para o exterior até saír de quadro, emitindo pequenos gritinhos, como se estivessem se divertido. O movimento da câmera persiste após o desaparecimento delas, e outros sons se juntam às notas estridentes do violino – o relinchar de um burro, por exemplo, e o ecoar de um sino –, constituindo o pano de fundo sonoro à imagem da cidadela.

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Esta imagem, com sua mista de objetividade e subjetividade, lucidez e onirismo, cuja mecânica operacional poderia ter saído de um trabalho de Tarkovski, exerce uma dupla função na trama de Palermo ou Wolfsburg: por um lado, é uma espécie de síntese da jornada trágica de seu protagonista, Nicola (Nicola Zarbo), em sua desventura abandonando a terra natal rumo a uma Alemanha que só lhe trará desgraça – ele, que logo mais aparecerá em cima de um burro cavalgando para a mesma planície vazia, que deixa para trás sua família e sua infância virginal, a pobreza da cidadela italiana, para tentar ganhar a vida na Alemanha; por outro lado, é a forma que Schroeter encontra para introduzir a cidadela de Palma di Montechiaro, na região de Palermo, na Sicília, imprimindo sobre esta imagem não apenas o sincretismo da trama, mas também o ar nebuloso de seu espírito, de o que é essencialmente o vilarejo (e o que ele representa para o seu personagem principal). O vilarejo será apresentado no primeiro ato do longa-metragem, através de um retalho de encontros de Nicola com seus conhecidos e seus familiares – sua pobreza, seu cotidiano, suas relações de familiaridade – ao longo de quase quarenta minutos em que, talvez nunca antes e nem depois em sua longa carreira, Schroeter abandona o seu habitual e exagerado sarcasmo para, a seu modo, se aproximar da tonalidade realista de um De Sica, de um Scolla, dos primeiros filmes de Fellini.

Esta mesma imagem que apresenta Palma di Montechiaro pode ser facilmente contraposta com aquela que apresenta a outra cidade onde o longa-metragem se passa, Wolfsburg: assistimos por 32 segundos um plano fechado do símbolo da Volkswagen, produtora de peças automobilísticas, atravessado por um trem passando em primeiro plano, sob uma canção de sanfona. A Wolfsburg de Schroeter será caracterizada pela onipresença da fábrica, único lugar onde há trabalho disponível para os imigrantes; onde, em clara contraposição à terra natal de Nicolas, a família é uma instituição falida (e o tio, logo em seguida, lhe rejeita abrigo), a riqueza é abundante, mas é incapaz de trazer felicidade a seus habitantes (Nicolas queima uma nota de dinheiro na noite de sua chegada, por não conseguir encontrar um lugar para dormir); onde o desenvolvimentismo, visto em princípio com entusiasmo, termina por ser apenas mais uma ilusão, incapaz de tornar melhor a vida dos homens.

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Mas se esta contraposição social e política existe, se há na Wolfsburg um quê de cidade moderna e liberal diferente da pobreza pacata de Palma di Montechiaro, mais interessante do que isto é a forma que Schroeter encontra para caracterizá-las em uma única imagem. Seu cosmos é reduzido a um único símbolo que, muito mais do que exercer uma função sincrética e mítica, surge como um grande mistério e se derrama diante de nossos olhos, pedindo que nós, espectadores, também mergulhemos nele, nos debrucemos sobre ele, engatilhando um processo mental contínuo de tentar entendê-lo, perscrutá-lo, questioná-lo – enfim, saber realmente o que significa aquilo que vemos. Tudo serve a esta operação: o minimalismo, a frontalidade, a encenação por poses – recursos que não simplificam, não reduzem, tanto quanto complexificam e ampliam o mergulho. Assim, se o tema de Palermo ou Wolfsburg é por excelência um tema fassbinderiano, se sua estilização se qualifica por ser um tanto expressionista (como deixam claras as imagens que evocam a memória do protagonista e as fantasias que perturbam a narrativa), e se a forma de encenação minimalista em tableaux teatrais tem alguma conotação a lá Syberberg, quando não a pose e a luz de um Sternberg ou a montagem violenta de um Godard, há, na gênese da imagem – no lugar de onde ela vem, bem como seu destino –, um quê da inviolabilidade hermética dos simbolismos de Tarkovski.

É curioso como esta inviolabilidade da imagem se torna, à sua maneira, espelhada na forma como a trama se desenrola. Caso tentássemos seguir à risca o esquema de tendências desenhado por Tag Gallagher, um filme como Palermo ou Wolfsburg estaria mais próximo da linhagem descendente do realismo estético do que da do realismo social, na qual o vilão paragona a simplicidade (pensemos, por exemplo, no exagero da maquiagem de todas as mães alemãs que aparecem no filme) e o herói é complexo e angustiado. Schroeter se demora demasiadamente, inúmeras vezes, no rosto de seu protagonista, investiga seu olhar e seu pensamento, mas jamais o rosto se torna a viva expressão de seus sentimentos (Balasz); do mesmo modo como jamais se torna uma máscara (Bresson). O rosto se revela uma dúvida inviolável, um momento estático no fluxo de uma vida que, por estar sempre em movimento, não podemos compreender. Um ponto de interrogação. Uma cidadela em uma planície; um símbolo de uma indústria atravessada por um trem; o rosto misterioso de um imigrante italiano na Alemanha: entendemos mesmo o que estas coisas são?

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Ironicamente, após cometer o derradeiro gesto de sua decadência e esfaquear os dois rapazes com quem tem alguma espécie de rixa, o protagonista é levado a um tribunal, onde se prostra no mais absoluto silêncio. Os advogados e testemunhas levantam diversas hipóteses para explicar seu ato: a incompatibilidade do temperamento italiano no mundo germânico; o espírito do capitalismo que imputa sobre os homens desejos violentos; a pobreza das terras subdesenvolvidas; a obsessão amorosa com a femme fatale loira de olhos claros… teorias sociológicas, antropológicas, psicanalistas – todas de alguma forma explicam parcialmente aquele rosto estranho. Certas testemunhas tentam culpá-lo, e outras tentam redimi-lo. E, ainda assim, mesmo que a sucessão dos acontecimentos esteja clara para nós (ao contrário, por exemplo, de um Rashomon), nenhuma das justificativas de suas motivações parece perfeitamente satisfatória.

Ao cabo do julgamento, constata-se que não há provas suficiente para condená-lo. Não porque não o consideram um assassino, mas porque não sabem qual foi o seu gatilho, se podem ou não condená-lo, por quem e como ele foi provocado e reagiu. É o momento que Nicola, em uma transe de lembranças e delírios, finalmente elevará sua voz para acusar a si mesmo, dizer que os matou com as próprias mãos e que o fez porque quis. Aquele rosto inviolável não se explica, mas reivindica a sua autonomia. A imagem grita por sua liberdade, quer assumir a responsabilidade por si mesmo; quer, em síntese, mesmo que enigmática, estar no mundo como um ser moral.

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