Outrage Beyond (Autoreiji: Biyond), de Takeshi Kitano (Japão, 2012)

outubro 7, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Fábio Andrade

outragebeyond

Do além
por Fábio Andrade

Quem acompanha mais de perto a carreira de Takeshi Kitano pode estranhar a maneira como o diretor retoma, em Outrage (2010) e neste Outrage Beyond, o universo yakuza de seus primeiros filmes. Pois, embora o cinema de Kitano sempre tenha existido sob o signo da demência, o mergulho mais aprofundado na raiz metalinguística dessa mesma demência iniciado no excelente Takeshis’ (2005) e que prosseguia em Glória ao Cineasta (2007) e Aquiles e a Tartaruga (2008) não é o tipo de viagem que garante bilhete de volta. Se há uma capa de transparência no duo OutrageOutrage Beyond, ela não vem sem certo incômodo, como se a aparente sanidade (para padrões de Takeshi Kitano, é claro) fosse apenas a face do monstro em repouso.

A necessidade de averiguação de tal incômodo leva à literalidade, e a literalidade é a primeira pista de que Outrage Beyond é mais uma continuidade desse mergulho dos filmes anteriores do que uma tentativa de repousar e retomar o fôlego: se em Outrage tínhamos um verdadeiro inventário de assassinatos, espalhando por toda a duração aquele ápice de violência que filmes como Sonatine (1993) e Brother (2000) reservavam para suas sequências finais, neste novo filme toda essa fúria, esta outrage, está “beyond”, ou seja, está além, está fora da ação que o filme mostra. O sufixo, portanto, é menos uma nova encarnação dos velhos “o retorno” ou “a vingança” que tradicionalmente marcam as franquias do cinema de ação, e mais um dado ontológico da natureza do dispositivo que norteia Outrage Beyond: levar esse acesso de violência para fora da cena.

Em um primeiro momento, percebe-se, com clareza, a finalidade política deste gesto: ao retirar da cena a fúria que realmente resolve os problemas, Kitano traz para a cena justamente os bastidores, a instância “limpa” e burocratizada da máfia japonesa. Muito como no primeiro Eleição (2005), de Johnny To – como bem percebeu Filipe Furtado em seu texto sobre o filme de Kitano -, o filme se infiltra na Corte, nas reuniões de cúpula dos velhos chefões do crime, para quem matar ou morrer é uma tarefa de gabinete, que se realiza (ou melhor: que se manda realizar) sem sujar as mãos. A decisão não é feita sem intenção de comentário: quase uma chanchada, Outrage Beyond é um grande repositório de tipos, de trejeitos, de expressões faciais e de grunhidos de todos aqueles homens-sapo que colocam seus capangas para trabalhar em seu lugar. Kitano se aproveita dos poderes do quadro e da montagem para enfatizar sua posição diante daquelas figuras – e aí chegamos a um traço distintivo de seu cinema de Takeshis’ para cá: ninguém é digno de compaixão (e Aquiles e a Tartaruga é um grande tour de force nesse sentido), a começar pela figura do próprio diretor e sua presença real e concreta em tela (não à toa, Kitano começa Outrage Beyond na prisão e, ao ser solto, em nenhum momento a muito aventada possibilidade de correção de rumos parece realmente viável).

Paralelo a isso, os arroubos de violência são todos jogados para o “além”, cumprindo o desejo do patrão: ouvimos tiros sobre uma tela preta para, no momento seguinte, vermos apenas as marcas das balas; dois capangas estão prestes a ser surrados, mas um capuz preto cobre a visão da câmera; Kitano luta com um rival no elevador, mas o corte para a cena se dá quando um tiro já furou sua barriga. Há, nesse sentido, uma aproximação com o pressuposto intelectual do cinema de Andy Warhol e também com a inexorabilidade do dispositivo de filmes como Wavelength (1967), de Michael Snow, e Serene Velocity (1970), de Ernie Gehr, em que o filme responde e reage a um conjunto de “regras” (ou melhor: um mecanismo) que determina seu funcionamento, independente de…

Neste sentido, Outrage Beyond se aproxima, decididamente, da definição de Luc Moullet dos filmes-dispositivo, a ponto de o filme fazer uma excelente piada com isso, na surra contínua dada por uma máquina que arremessa bolas de baseball contra a cabeça de um white collar da máfia: “Um filme-dispositivo (…) é ao mesmo tempo um conceito (como os conceitos literários de Georges Perec ou de outros membros do Grupo Oulipo, escrevendo uma novela inteira com a limitação específica de não usar determinada letra do alfabeto) e uma máquina. Antes de tudo, é um filme conceitual, (no horizonte da arte conceitual), uma disposição (…) que usualmente anuncia sua estrutura ou sistema de início, na primeira cena, até mesmo em seu título, e então deve seguir o caminho traçado por esta estrutura passo a passo, até um terrível ou auspicioso fim”.

A questão, porém, é que para Kitano não é suficiente aderir simplesmente a uma lógica anterior ao filme. Há uma razão muito específica para essa adoção que vai se esclarecendo e, ao mesmo tempo, se esburacando rumo ao fim. Outrage Beyond é um filme-dispositivo sobre a falência desse mesmo dispositivo; um filme-dispositivo, de fato, mas um dispositivo de auto-destruição.

Há, nesse sentido, um plano-chave em Outrage Beyond, em que o saco preto que encobria a cabeça de dois capangas se torna ferramenta de vingança: Kitano o coloca sobre a cabeça de um rival e, como um espetáculo de tortura para o outro rival, que aguarda sua vez de ser torturado, fura seu “olho” com uma furadeira elétrica. Não vemos mais do que uma broca entrando em um saco preto, mas é justamente este gesto de invasão que marca o principal movimento do filme: se, por um lado, Outrage Beyond é um filme sobre o que está “além”, por outro lado, o que está de fora está sempre fazendo força para entrar em quadro, e o que está em quadro está sempre vazando, também, para o lado de fora.

É como se a cena – o décor higiênico de todos aqueles gabinetes de morte – sofresse constantemente a pressão de tudo que se insiste deixar à parte, mas que é forte o suficiente para fechar o cerco a ponto de, no final, não ser mais possível respirar ali dentro. A cena, em Outrage Beyond, é colocada dentro deste saco preto, e aqui não falo apenas de maneira literal, como na cena do espancamento, em que isso de fato acontece com a câmera. A furadeira que destroça aquele não-rosto, aquela não-imagem, é o símbolo da própria construção do filme, da estrutura que ele testemunha e de como ele se porta diante dela: sujar as mãos será inevitável.

Nesse sentido, Outrage Beyond se encontra, de fato, com a primeira fase da carreira do diretor, mas por motivos diferentes: aqui, como em Sonatine ou Brother, o arroubo de violência só toma de fato o quadro (em suas mais diversas formas) no ato final, embora o motivo para isso seja radicalmente outro – a tal infiltração e falência de seu próprio dispositivo. Outrage Beyond, mais até do que Outrage, é o filme que concilia a auto-exploração metalinguística de Takeshis’ com a pulsão frontal dos primeiros filmes de Kitano, e que encontra, na verdade, o terreno comum em que todos esses filmes convivem. Uma vez invadido o quadro, Kitano mostra um domínio ainda mais preciso dos pequenos detalhes dessas explosões de violência (assim como se dedicava a cada nuança do quinhão chanchadesco do filme), como o sujeito a morrer no terraço que segue atirando mesmo já sem enxergar o alvo ou toda a encenação da sequência com a máquina de baseball. Estamos bem próximos de um filme como Rififi (1955), de Jules Dassin, em que o gosto pela cena está justamente na invenção de cada pequeno desvio, cada traquitana que tem seu sentido desvirtuado e reinventado como um novo ente. Outrage Beyond é, de certa forma, um filme pós-dispositivo, pois lutar contra a força desse mesmo dispositivo é questão política: é necessário colocar em cena, reconectar pontas que não deviam ter sido cortadas, fazer com que a chanchada de gabinete acerte as contas com as ruas.

Por outro lado, existe retrato mais fiel a este fora-de-campo do que essa invasão do campo, essa investida da morte que toma de assalto o reino dos vivos e que, pelo vazamento desta deliberada não-imagem, nos obriga a ver?

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