Ouro (Gold), de Thomas Arslan (Alemanha/Canadá, 2013)

outubro 5, 2013 em Coberturas dos festivais, Em Campo, Filipe Furtado

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O vazio da estrada opaca
por Filipe Furtado

A ideia do faroeste de trilha, do filme de grande caravana, é uma que tem um apelo inegável ao cineasta contemporâneo que resolve se aventurar no gênero, seja pelo seu gesto de aventura, pelo valor simbólico do movimento, ou sobretudo pela possibilidade estética existente em um grande grupo em deslocamento perdido. Não à toa, esse parece se tornar o movimento favorito de cineastas mais afeitos ao mundo de festivais ao se aproximar deste universo, algo visível, por exemplo, em Meek’s Cuttoff (2010) de Kelly Reichardt, espécie de releitura em chave alegórica do faroeste absurdo à Monte Hellman.

É a este registro que o diretor alemão Thomas Arslan procura se filiar neste Ouro, que narra as desventuras de um grupo de pioneiros alemães tentando cortar o Canadá na última década do século XIX, sob a promessa de uma área ainda pouco explorada na corrida do ouro. Se algo diferencia Ouro de outras caravanas similares é justamente a sua depuração: Arslan elimina de seu filme praticamente qualquer elemento para além do seu desejo de levar sua câmera para o imaginário do velho oeste. É um filme-exercício pouco dado aos preciosismos que costumam dominar trabalhos semelhantes.

Thomas Arslan está longe de ser um novato. Embora pouco conhecido no Brasil e de geralmente não frequentar as competições dos grandes festivais europeus (apesar de Ouro ter competido em Berlim), ele desenvolve uma obra das mais interessantes desde meados dos anos 1990, com filmes que geralmente partem de estruturas dramáticas requentadas para se aproximar da vida alemã. Neste cenário, Ouro é um objeto bastante reconhecível – não haverá, afinal, gênero tão rico no imaginário cinéfilo quanto o Western – e, ao mesmo tempo, muito estranho, já que joga Arslan não só no filão do filme histórico, mas lhe põe em território estrangeiro tão pantanoso para o seu olhar quanto para seus personagens. Arslan é parte de uma geração do cinema alemão que se cansou de encenar imagens de fugas fracassadas, e sua ida ao norte canadense – uma opção bastante significativa de se repensar o imaginário da fronteira – é só mais uma delas.

Três anos atrás, o diretor realizara seu melhor trabalho, Nas Sombras – um vigoroso filme de assalto exibido aqui no Festival dentro da retrospectiva da Escola de Berlim, e que é uma boa porta de entrada para o estranhamento causado por Ouro: ambos são tentativas de partir de uma série de imagens e arquétipos muito reconhecíveis e envolve-las num mistério que lhes devolva um frescor próprio. Só que, se o filme de assalto à Melville serve perfeitamente à narrativa desidratada proposta por Arslan – sua ênfase em processo e figuras esvaziadas enriquece o material –, o faroeste não abraça tal opacidade com a mesma facilidade. É uma negociação que Arslan faz a duras penas, algo bem representado pela trilha sonora genérica que retorna a todo momento, envolvendo o filme numa monotonia de ritmo contraprodutiva.

O que impressiona em Ouro é justamente o seu vazio. Sua dramaturgia é filtrada de tudo que a principio lhe daria viço; dela, restam somente traços, a começar pelo nome. A sequência inicial e o titulo pressupõem um filme sobre ganância, mas muito rapidamente esta imagem se dissipa. O ouro do título é um mote para a ação, um objetivo distante, mas nunca um norte para seus personagens. Fazer um filme sobre tipos gananciosos que se perdem no meio da própria loucura seria fácil demais. O ouro se revela um brilhareco que é passado na frente dos personagens de tempos em tempos, para lembrá-los de porque se movem, mas é, também e somente, um objeto de cena.

Numa das cenas chaves do filme, aquele que é o mais irritante dos membros do grupo, e que a ação sugere estar prestes a desencadear uma confusão, entra na floresta para caçar e de pronto pisa numa armadilha. O absurdo da situação desmonta boa parte da tensão que o filme fingia construir até ali, e o momento abrupto representa bem a recusa do filme em se abrir junto ao espectador. Essa recusa completa de significado é sua maior qualidade: Ouro não quer ser sobre nada além do seu percurso, e esse é um desejo frustrante, porém honesto.

Um dos dados mais curiosos do filme é justamente a maneira com a qual ele se estrutura de maneira a eliminar suas personagens quanto mais claras e desprovidas de mistério são suas motivações. Um a um, eles desaparecem, até para que, nos planos finais, reste somente a feição de Nina Hoss, atriz cujo maior mérito é justamente uma facilidade em manter-se nebulosa, cada gesto e inflexão obscurecendo-a mais, e cuja personagem aqui é justamente marcada pelo inexplicável. Ouro é também um faroeste absurdo, mas aqui o absurdo não é do mundo, mas da sua própria necessidade de seguir o seu percurso, de existir a qualquer custo. É um trajeto demente para o qual múltiplas opções de saída são oferecidas e recusadas. Segue-se em frente porque, por fim, não há outra motivação além de ser personagem de Ouro; logo, não resta outro caminho que não seja seguir o trajeto e encarar a morte inevitável.

De certa forma, o que Arslan termina por produzir é um encontro entre as aparências do faroeste de caravana com a essência do road movie que lhe sucedeu. Sua insistência de se ater ao trajeto a todo custo e seguir num diálogo solitário com a tradição é tão insana à sua maneira como a viagem empreendida por seus personagens. Dela, só escapam completamente impunes a paisagem canadense e o rosto opaco de Hoss. O que resta de Ouro, porém, é o peso da viagem, e o desejo pretensamente realista de Arslan de traduzi-lo para a tela. O que há de mais memorável no filme é a inclusão de detalhes normalmente suprimidos, como os mosquitos a rondar os personagens. Se o filme não esconde que o desejo pelo trajeto suplanta qualquer outro, é também sincero no seu martírio. Caso o espectador se identifique com alguém na tela, provavelmente não será com os colonos alemães, mas com os cavalos, aqueles que sofrem em silêncio a violência do trajeto, os protagonistas secretos do filme para os quais a opacidade é algo natural e não resultado de uma operação de enxugamento dramático. É este desejo de autenticidade, esta busca por achar um equivalente visual para uma caminhada condenada que se impõe ao filme, e se torna, em meio à ausência de significantes, seu destino final, um gesto opressor que vai na contramão da ideia de velho oeste.

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