O Último Cine Drive-in, de Iberê Carvalho (Brasil, 2015)

setembro 18, 2015 em Cinema brasileiro, Em Cartaz, Pablo Gonçalo

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A nostalgia, o restauro e a cidade moderna
por Pablo Gonçalo

Há bem pouco tempo ainda soava estranho constatar um cinema de Brasília genuíno, original, que gerasse uma remota mas possível “identidade” (palavra perigosa, mas necessária, aqui, de ser evocada justamente por revelar os seus tentadores desvios). Embora essa afirmação de um cinema de um lugar ainda implique várias e legítimas dúvidas, o cenário cinematográfico dos filmes feitos no Distrito Federal (DF) evidenciou um grupo de obras e nomes distinto de alguns anos atrás: hoje não se pode negar que há algo já “fora das caixinhas” nas películas rodadas e abrigadas por essas bandas. Da cidade que encarnou projetos de países e urbes possíveis – cidade da utopia, como apregoava-se – emergiram realidades múltiplas, diversas, que não configuram uma visão harmônica, mas tensa, contraditória, prenhe das mais amargas e saborosas imperfeições.

Foi justamente esse atual panorama que inseriu outras questões, que retomam uma certa herança de um “cinema candango” – e aqui as aspas merecem uma atenção  redobrada – para atualizá-las e que apontam para desdobramentos futuros. Depois de A Cidade É Uma Só? (2011), cujo título já torna clara uma vontade de cisão, e depois de todo o desdobramento e da consolidação da cinematografia de Adilrey Queirós pelo Brasil afora, a própria unicidade de, para e diante de Brasília foi colocada em xeque. O cinema, no discurso de Adirley, não é (mais) daquela cidade; mas da Ceilândia, lugar de fala externo, poética e política, lugar à margem que reivindica um centro de gravidade, da onde a voz do cineasta eclode para rasgar um perverso senso de equilíbrio. Não é por acaso que em Branco Sai, Preto Fica (2014) os próprios pilares da cidade moderna e planejada acabam ao vento, entre estilhaços imaginários. Não há conciliação, mas tampouco há mais utopia para a cinematografia desta cidade. Doravante, ao cinema que por esses terrenos desalinha-se, os desafios são outros.

Ainda que de maneira tênue, latente e sublinear, Marlon Brando (Breno Nina), o protagonista de O Último Cine Drive-in, filme de estréia de Iberê Carvalho, carrega consigo um pouco desses deslocamentos. Seus passos trôpegos desembarcam no hospital de base, no antigo centro da cidade, onde ainda hoje Brasília parece resguardar uma certa aura de centro comum a qualquer metrópole. Ele vem de Anápolis, cidade grande, industrial, vizinha de Brasília. Em Anápolis, nos sopram a ficção e o enredo do filme, Marlon Brando trabalharia numa fábrica. Sua mãe, Fátima (Rita Assemany) está doente, em premente estado terminal, e em menos de dois meses morrerá. Brando não possui uma relação amistosa com Almeida (Othon Bastos), seu pai, que é dono do último Cine Drive-in do Brasilplot forçosamente repetido no filme. Ao seu jeito, Almeida bem representa a geração dos primeiros imigrantes, os ditos candangos, desbravadores e construtores de Brasília, cuja narrativa épica e trajetória, no cinema, foram melhor poetizadas por Vladimir Carvalho.

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Pouco a pouco, a dramaturgia aponta para uma rota. Esses deslocamentos geográficos e espaciais de Brando vão se concentrar numa delimitação bem específica: o cinema de e na rua, a projeção da principal arte do século XX entre carros, amantes e, talvez, alguns cinéfilos perdidos por lá. Essa ênfase no espaço lúdico do drive-in, escolha por tal mote romântico do cinema, conduz tanto a uma identificação do protagonista com seu passado – substanciada na aceitação da herança paterna, quanto uma forma altiva de atuar na cidade e nela intervir. É pelo cinema que a capital adquire sentido, à margem do seu cotidiano, à margem dos preços caros da cidade, dos carros novos, dos multiplex que vendem ingressos embalados pelos pacotes 3D. É como se o drive-in fosse uma ilha comunitária, onde circula uma família afetiva, mas também hierárquica, de trabalhadores e patrões; onde os perigos e desgostos da cidade e do tempo que os rodeiam podem ser esquecidos, evitados, e mesmo sublimados.

Todo o arco dramático do filme possui, portanto, um forte veio nostálgico – em termos cenográficos, lúdicos, afetivos e cinematográficos – uma nostalgia que pretende reconstruir e reviver aquele mundo e aquele tempo perdido. Em alguma medida, esse gesto de retorno ao tempo esvaído é intrínseco à mágica do cinema; ele está lá, no filme, encarnado pelo tripé película, projeção e um público em carros. Mais: o cinema permite esse regresso imaginário a um passado já intocado. Mesmo consciente dessa potência, o filme de Iberê Carvalho acaba privilegiando uma atmosfera nostálgica de cunho dramático – de fora para dentro, do enredo à trama – em vez de tecer uma pulsação nostálgica na encenação. Se a nostalgia é de fato uma escolha, uma decisão e um tom estético coerentes, ela, ainda assim, ganha matizes, formas e concepções na obra que acabam por modular os potentes mistérios de uma história mínima numa exagerada e desnecessária carga dramática. Subitamente, o filme embaralha comoção com narração.

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O maior problema de O Último Cine Drive-in não é apenas que essa nostalgia seja excessiva, nem tampouco que ela esteja alçada em estruturas melodramáticas que muitas vezes não convencem; seu problema estrutural está em acreditar demais nesse próprio ambiente nostálgico que é construído artificialmente pela ficção e pelo cenário; está em se deixar comover em demasia pelo fetiche disparado pelo filme, ao invés, num contraponto, de interagir altiva e cinematograficamente com ele. Uma comparação com, por exemplo, a obra de Philippe Garrel, ou mais especificamente seu filme Amantes Constantes (2005), que mergulha em Maio de 1968, em Paris, permite elucidar um pouco sobre essas nuances e matizes da nostalgia. Lá, a câmera insere um choque no quadro, na narrativa; um hiato de diferença histórica de uma poética anacronia do olhar, que pulsa cinematograficamente. Existem nostalgias que ferem, que Garrel faz como poucos no cinema – e essas são potentes, incomodam, inquietam; existem, por outro lado, nostalgias que geram reconfortos, abrigos, uterinos e comunitários – e essas costumam apenas refutar o tempo presente.

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Na sua etimologia grega, a palavra nostalgia remete a um retorno à casa. Um retorno que dura, que se distende no tempo, que se dilata. Os passos e o arco dramático de Marlon Brando revelam justamente um desejo desse retorno, uma vontade de abrigo; um regresso à sua família, à mágica de um cinema de rua, a uma Brasília que já, para o bem ou para o mal, não é mais como a dos seus pais. É aqui, nesse entroncamento, que encontramos um tenso diálogo com a nostalgia de uma cidade que foi projetada para ser utópica. A nostalgia, contudo, é quase sempre compreendida como o revés da utopia, que pretende precisamente inventar um novo lugar, um lugar que já não há, um lugar que não está em lugar algum. O que acompanhamos em O Último Cine Drive-in é uma nostalgia restorativa, nos termos de Svtelana Boym, que é bem distinta de uma nostalgia reflexiva, a qual, mais próxima de Garrel, inseriria frente à sua própria maquinaria. Não seria, em suma, incoerente estabelecer um diálogo, ainda que tácito e improvável, dessa forma de nostalgia com os impasses da cidade moderna e utópica?

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Além de ser unitária e bem recortada às asas do avião de Lúcio Costa, a Brasília de O Último Cine Drive-in pulsa desde o primeiro quadro: nos espaços amplos, na catedral de Niemeyer, que surge na profundidade de campo, nas ruas e avenidas feitas para um já ultrapassado modernismo automobilístico. Há, no entanto, um veio nostálgico da cidade que pulsa pelas fotos, as cenas em super 8mm, os posters, a locação. Nos seus instantes mais frutíferos – na primeira parte do filme – vemos as pequenas ruínas desse local abandonado, o Drive-in em contraste com o estádio de um bilhão de reais, construído; ou as ruínas, luminares, solares, castigadas pela seca, por uma terra adusta, que queima as retinas. Isso é potente, isso fere.

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Seria necessário – como sussurra o filme – recuperar um projeto de vivência e ambiência da cidade? Não seria, por exemplo, mais potente estranhá-lo em vez de fetichizá-lo? Curiosamente, esse mesmo cenário do Cine Drive-in abrigou Um Trailer Americano (2002), um precioso curta do então jovem José Eduardo Belmonte. O que vemos, diante da tela branca, é um trailer, físico, ou uma linguagem de trailers cinematográficos. Ali, os personagens vivem o cinema no seu intervalo de consumo; mais, eles vivem entre um tédio, um vazio, uma distopia e uma irônica metalinguagem que visa gerar instantes poéticos, entre, dentre, diante da cidade, mas também para além dela. Viver numa cidade não é apenas caminhar por ela, a fim de remeter a um passado longínquo, mas tencioná-la à angústia do presente. Remeto ao filme de Belmonte apenas para gerar um contraponto, já que na primeira fase da sua obra, mais atrelada a Brasília, não há espaço para a nostalgia da cidade da utopia, mas surge, em filmes como A Concepção (2005), um intrínseco incômodo frente ao projeto utópico que foi herdado. É como se fosse preciso regurgitar as entranhas dos preceitos modernos, sem nunca deixar de ser moderno.

Mesmo diante de todos esses questionamentos levantados, percebe-se um filme de estréia digno de realce e que também revela uma interessante síntese/encontro de uma geração de já experientes profissionais do cinema feito em Brasília. As ruínas solares, a saborosa lentidão da primeira parte do filme e a forma como o espaço é misteriosamente construído nos apontam para um diretor e uma obra que podem obter desenlaces interessantes. Não fosse essa dramaturgia do restauro, essa ênfase numa nostalgia problemática, e um desnecessário happy end, pretensamente apoteótico e estranhamente conciliador, estaríamos criticando um filme efetivamente potente. Estas linhas, portanto, são sugestões de um debate urgente, necessário para lidar com as ricas contradições dessa cidade. Que venham os próximos longas e que esses deslizes apenas embalem a força de tantos projetos.

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