O realismo de Béla Tarr

maio 16, 2013 em Em Pauta, Pedro Henrique Ferreira

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A danação e o fazer artístico
por Pedro Henrique Ferreira

Desde ao menos 1982, à época do lançamento de Macbeth, as interpretações mais recorrentes da obra de B´la Tarr sofrem dos mesmos equívocos. Enxergam-na como uma metafísica que se apresentaria na mise en scène rigorosa, no plasticismo da luz, no virtuosismo da câmera em longuíssimos planos-sequências ou na aura extraterrena que eflui das planícies ventosas e dos vilarejos recônditos no Leste Europeu. São olhares como este que levam à conclusão típica que se tem sobre o autor, aquela que Susan Sontag sintetizou ao escrever que Tarr é um “master stylist”. Ela também está nos Cahiers du Cinema, que à época da première francesa teria dado a O Cavalo de Turim (2011) uma única estrela, criticando-o por ser um espetáculo excessivo dirigido por um estilo autoral inautêntico. Mas quando nos aproximamos da obra de Tarr, pondo-a numa perspectiva histórica e tendo em vista a evolução de sua poética, deparamo-nos com fundamentos que apontam o quão distante se está da chave de investigação que guiou o artista húngaro no trajeto de sua carreira.

É verdade que a adaptação televisiva de Shakespeare com apenas dois planos-sequências caminhava na contramão do realismo social de seus três primeiros longas-metragens, a rigor, Ninho de Família (1979), The Outsider (1981) e Pessoas Pré-Fabricadas (1982). Em mais de um artigo, o crítico Jonathan Rosenbaum escreveu que esta primeira parte da filmografia de Tarr teria sido fortemente influenciada pela câmera na mão, os ambientes confinados e o tom de falso documentário de John Cassavetes. Sabe-se que o próprio diretor nega esta influência em sua formação, e que, em entrevista, retorquiu que só teria assistido um filme do diretor independente norte-americano já em 1985, pois a disponibilidade de películas estrangeiras na Hungria ainda era escassa nos anos 1970. Seus primeiros longas-metragens de baixíssimo orçamento foram financiados junto ao estúdio Béla Balazs,uma pequena comunidade low budget que produzia filmes experimentais e documentários orientados para retratar a vida precária da classe trabalhadora. A temática deles cresce espontaneamente do diálogo com a produção documental da época (e da qual ele se tornaria um dos maiores expoentes), de tal modo que aspectos estéticos como a câmera na mão ou a opção por cenários confinados não brotam tanto de influências cinéfilas quanto de constrições financeiras e, sobretudo, de um percurso artístico autodidata.

The Outsider (1981), de Béla Tarr

The Outsider (1981), de Béla Tarr

Também não se pode menosprezar a quase-formação filosófica de Tarr, que, inclusive, o próprio autor levou às telas em seu suposto derradeiro filme, numa singular adaptação da filosofia de Nietzsche. Originalmente, intencionava seguir a carreira de filosofia, mas foi impedido pelo governo de ingressar na faculdade após realizar, ainda com 16 anos, uma série de documentários amadores em bitola 8mm que retratavam a vida da classe trabalhadora da época. Após esta rejeição, Béla Tarr cogitou cursar cinema, mas desistiu prontamente, preferindo aprender a arte na prática. Assim, o artista não chegou ao cinema por uma paixão ou predisposição específica à arte, mas por ter encontrado na câmera um aparato que lhe serviria a se aproximar das pessoas e das coisas. Retratar o drama das classes proletárias em espaços confinados era uma tática que se distanciava das bandeiras reformistas de um realismo social de tendências imediatamente marxistas. Era um anseio de compreensão, mais do que um retrato-denúncia ou um panfleto político. A câmera na mão é o método mais direto de se aproximar desta realidade; a insistência no quadro demorado sob os rostos de seus atores está ligada às conotações psicológicas da verdade balazsiana, esta que decorre dos estados psíquicos de um homem colocado sob certas condições; o tema é o resultado de uma ânsia que procura uma aproximação do rosto de um homem, seja na miséria da Hungria pós-abertura ou no ermo das planícies interioranas. Estamos no âmbito de uma pesquisa verdadeiramente realista para desvendar o mundo à sua própria maneira. A transição de uma fase à outra não é marcada por uma passagem de um realismo a uma metafísica. É por uma linha contínua que se inicia em uma forma de realismo e termina em outra.

O diálogo que esse realismo de Tarr estabelece mais imediatamente é com a utopia romântica-histórica de Jancsó, seu compatriota que, sabe-se, figura entre suas maiores inspirações. Podemos observar a filiação em escolhas que são cênicas (p.e.: a predileção por planícies vazias e vilarejos do interior do país), estéticas (longuíssimos plano-sequências cheios de zooms e movimentos de câmera cuidadosos; a encenação sincronizada numa espécie de balé), temáticas (as relações de opressão no interior da sociedade; os dramas morais; o encanto/desencanto com o progresso social e a humanidade) e até simbólicas (a recorrência da dança e da música folk como elemento que gera sentido), entre outros. Mas Tarr atualiza os recursos levando-os a um universo apocalíptico. Trata-se de um longo processo de decantamento do romantismo histórico de Jancsó.

É neste procedimento que encontramos ecos de seu cineasta preferido, R.W. Fassbinder, e que justificam as opções cromáticas de Almanaque de Outono ou a predileção por párias sociais, outsiders, bodes expiatórios de um mundo decadente. Num momento histórico pós-abertura, quando não se pode crer na utopia social como salvação, ou sonhar com nenhuma forma de milagre, o autor se debruça sobre o desolamento para encontrar nele um valor artístico. Em 1988, quando Tarr inicia Danação com um teleférico em perspectiva que se estende rumo ao horizonte, e recua apenas para mostrar um homem a olhá-lo pela janela, não restam dúvidas de que sua intenção é associar o tema da abertura democrática e o desencanto com as teses marxistas a uma poética que excluí o que está distante, ausente, e volta os olhos para aquilo que está mais próximo, que freia a imaginação tipicamente romântica num longo processo de redução dos objetos até a sua realidade mais tátil. Ora, a partir dos filmes de Tarr nos anos 1980, é possível verificar que esta realidade já não é nem sua condição social, nem sua subjetividade.

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A utopia supõe um futuro, porque exige que uma transformação em relação ao momento presente seja crível ou imaginável. Exige, portanto, uma crença na história. A história, por sua vez, exige que o tempo escoe para além de um momento presente, que um momento sobreponha-se a um outro que lhe é anterior. Mas o passado e o futuro não são estados factuais. São recordações ou projeções, pressentimentos ou suposições arqueológicas, mas sempre são frutos da imaginação. Ao caminhar na contramão da utopia, Tarr também freia a imaginação. Ao frear a imaginação, põe em suspenso a história, e consequentemente, põe em suspenso também o tempo. Desta disjunção entre realidade e experiência histórica, o diretor húngaro opta pela primeira e se recusa em tomar como inspiração os conceitos e formas da segunda.

Assim, o que lhe resta é somente o presente. Mas o presente de Tarr não é um estado momentâneo, um instantâneo capturado no tempo (Aumont), pois nem sequer subentende a existência de um contínuo vital. O presente é entendido como uma presença, como um ser-aí de objetos que se encontram num estado de estagnação. Uma paralisia rigorosa da matéria que, para ser real, tem de se desnudar de toda e qualquer conotação temporal. Assim, não é produto de um contexto ou de profundidades subjetivas, desconectado de qualquer relação de ausência ou remissões a um mistério inefável. Cada objeto, para ser exposto em sua realidade, tem de se reduzir até se tornar uma matéria pura, imobilizada, fria, cuja existência fica desprovida de sentido (pois o sentido mesmo é um produto da história e do tempo). Por uma heurística da pesquisa realista, quão mais fundo se lançar, mais próximo se encontrará de uma realidade que não é senão a superfície de um objeto. Nela, não há verossimilhança, porque o seu fato é tão incoercível que a dispensa prontamente.

Trata-se de uma realidade “real demais” até mesmo para o mundo possuí-la. E este nível de realidade não pode ser despertado na experiência da vida. Ele é possível somente na criação da imagem, no registro de um corpo, desvelando uma verdade mais profunda que a natureza. Mas registrar algo é imobilizá-lo, é matá-lo. Os rostos tornam-se catatônicos, pois experienciar a dormência é também experienciar uma forma de morte ou, pior do que isto, uma forma de danação. Ao sonho vívido da utopia romântica, Tarr contrapõe a morte, que é, por sua vez, um despertar. Mas também é neste torpor que está a epifania divina, a experiência de encontro com uma realidade mais profunda. É o paradoxo que Harmonia de Werckmeister explora ao colocar como elo entre o homem e o cosmos uma enorme baleia morta exibida em um circo. Eis o sentimento concomitantemente ultratrágico e epifânico da poética de Tarr, que sempre seguiu uma orientação realista. Ora, o que muda no desenrolar de sua carreira é muito mais do que um crescente interesse formalista, mas o seu senso de realidade.

Harmonias de Werckmeister (2000), de Béla Tarr

Harmonias de Werckmeister (2000), de Béla Tarr

A singularização da dignidade

Uma procura expressiva por tal letargia tem seus correlativos na história da arte, seja nas pinturas de Caravaggio ou na literatura de Simenon (adaptado em Homem de Londres, de 2007), mas sua forma cinematográfica exige uma elaboração cautelosa. Como paralisar um corpo que, sob os signos cinematográficos, está sempre em movimento? Como criar a sensação de marasmo com uma ferramenta cuja condição sine qua non é criar um contínuo temporal? Inicialmente, por um esvaziamento do espaço cênico, reduzindo-o somente aos objetos essenciais. Esta é a razão pela qual, com efeito, Tarr foi muitas vezes considerado um minimalista. Para conhecer a verdade íntima de um corpo, é preciso isolá-lo do contexto que lhe envolve num espaço vazio. Não há uma natureza anterior que lhe circunscreva. Assim, observa-se este corpo em sua autonomia, o ser-em-si em vez do ser-no-espaço. Nada mais preciso do que armar quadros com poucos objetos, cujo redor é desprovido de significados plurais, evitando a recomendação de Bazin sobre a qualidade dos movimentos simultâneos no interior do plano-sequência. Visualmente falando, eles estão sempre em centros de atenção do olhar muito definidos: é uma tina onde uma mulher urina; um porco; um ventilador de teto; um grupo de revolucionários em torno de uma fogueira; os pés de um homem a pisotear uma poça. E nada mais do que isto. É justamente esta solidão a causa de sua tragédia. Por isto a predileção por figuras decadentes, bêbados ou prostitutas, por ferrugens envelhecidas ou madeiras em apodrecimento, por uma miséria que não é apenas um correlativo do estado da Hungria após a abertura econômica e social, mas uma indigência que relata diretamente a este estado catatônico de danação. Um estado essencial que tem mais a ver com dignidade do que horror.

Sobre estes corpos, lança-se uma única fonte de luz intensa, dura e unívoca, que deixa vestígios de sua incidência na superfície dos corpos e os fixa em uma condição particular de espaço-tempo. Sempre que possível, abstrai-se de preenchimentos ou contraluzes, e utiliza-se do P/B somente para salientar esta diferença. Assim, a luz realça os volumes na mesma medida em que cria regiões intensas de claridade e escuridão onde todas as variações intermediárias são queimadas, numa composição de quadro por chiaroescuro que segue as prescrições caravaggescas. A luz dura de Tarr congela o tempo e força o olhar a se manter sobre o modelo na medida em que o singulariza, revelando sua aparência exterior e banindo sua interioridade. Ora, no realismo que postula, não há mesmo um interior para além desta superfície do corpo. Ao invés disto, a realidade é esta superfície. É ela o fato que permaneceria oculto, não fosse a composição da imagem, não fosse o gesto artístico que é sempre, por excelência, um gesto de revelação. O fazer artístico é como lançar sobre a miséria da existência esta luz infreável, retilínea, uma luz que põe a figura num estado de suspensão, tal qual a incidência dela no quadro “Vocação de São Mateus”, que é signo e ferramenta de um milagre espiritual.

Vocação de São Mateus (1599-1600), de Caravaggio

Vocação de São Mateus (1599-1600), de Caravaggio

A noção de tempo de Tarr é uma consequência desta estratégia. Afinal, qual melhor concepção para representar este estado perpétuo de paralisia do que a ideia de um “eterno retorno”? A maldição é como o mito de Sísifo, que carrega a pedra ao cume do monte: sempre ter de viver as mesmas coisas. E a circularidade é a forma temporal que indica a imobilidade. Ela é transposta como um princípio do motor narrativo, como nos múltiplos olhares em Satantango, ou nos sete dias rigorosamente iguais de O Cavalo de Turim. Semelhantemente, as ambiências sonoras de Mihaly Vig, o compositor com quem faz parceria, simulam um efeito tonal minimalista e serialista, modulando poucas notas em repetições e variações. Mesmo os movimentos no interior do quadro na maioria das vezes seguem ações e deslocamentos que se sucedem reiterando-se, repetindo-se. Estamos no polo oposto do tempo neorrealista de Rossellini, da fenomenologia de Bazin, do tempo espiritualizado de Tarkovski ou Bergson, dos cristais de Deleuze: da mesma forma que o espaço não antecede os objetos, também o tempo não é um fenômeno que os antecede. Por inversão, nasce da operação de fecundar os movimentos possíveis neste conjunto limitado de coisas. É germinado como uma extensão da capacidade de locomoção de cada corpo isolado do mundo. No prólogo de Harmonias de Werckmeister, quando o protagonista se utiliza dos corpos dos bêbados para uma demonstração do ciclo lunar e termina dançando junto com eles, temos uma espécie de carta de intenções da relação entre a luz, o corpo e a circularidade do tempo, os aspectos estéticos centrais no cinema de Tarr.

Quando a utopia é interditada, a imaginação freada e a história descreditada, a única coisa que permanece é um aqui-e-agora ao qual estamos condenados, um espaço composto por superfícies, que é a condição real e trágica do ser-em-si. Ao artíficie cinematográfico, o esforço artístico não é entendido somente como uma demonstração desta condição perpétua. Antes, é um ímpeto realista de, sob a tutela deste estado existencial, formular imagens. O que as justifica são tão somente elas mesmas, e a potência estética de arrebatamento e criação que elas nos trazem. Nos encontramos num curioso âmbito da estética, num divórcio entre a arte e as demais esferas, num lugar onde a práxis remete apenas a si mesma e, assim, faz aquilo que pode fazer: transmite seu próprio e singular conteúdo da verdade. Isto é: luzes, movimentos e corpos emoldurados pela câmera. A eterna ânsia do artista é tramá-las sempre de formas diferentes, utilizando-se das únicas coisas que têm em mãos para desvendar novos conteúdos, pois é aí que desabrocha sua inventividade. É a razão pela qual os sete dias de O Cavalo de Turim reciclam os mesmos atos, mas a realização cinematográfica de cada uma destas, a práxis, é cada qual esculpida à sua própria maneira – é o esgotamento de uma poética elevada a seu ápice. Por isto, qualquer crítica que parta do esforço de analisar unicamente o discurso político, o temperamento irascível, a visão de mundo do autor, o pessimismo exagerado e as conotações sobre a Hungria contemporânea, falharão em justificar sua forma artística e os efeitos de seus procedimentos. Estes continuarão sendo vistos como meras elegias ao noir, métodos expressionistas ou estilização maneirista.

O Cavalo de Turim (2011), de Béla Tarr

O Cavalo de Turim (2011), de Béla Tarr

É curioso que Bela Tarr não intencionava realizar a adaptação de “Melancolia da Resistência”, de László Krasznahorkai, até conhecer o ator Lars Rudolph e achar que ele seria ideal para encenar o papel de János Valuska. O gatilho para fazer um filme não era filmar uma história, mas filmar uma pessoa. A palavra é banida. A narrativa literária, reduzida a uma fonte de inspiração. Não um ponto de chegada, mas um ponto de partida para interrogar um corpo sobre suas superfícies e movimentos. Processo semelhante a diretores como Albert Serra (e os moradores de sua cidade natal) ou Pedro Costa (e os moradores de Fontainhas) que, curiosamente, cada qual à sua maneira, reverenciam ou dialogam com o projeto artístico de Straub/Huillet. O que o realismo de Tarr herda do casal francês é esta clara definição do potencial cinematográfico como um valor autossuficiente, e a reposição de sua função num sistema integrado das artes: seu destino é decifrar os movimentos dos corpos num cosmos que é luz e escuridão.

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