O Que se Move, de Caetano Gotardo (Brasil, 2012)

março 11, 2013 em Cinema brasileiro, Em Vista, Luiz Soares Júnior

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O sopro do presente
por Luiz Soares Júnior

“Il fault donner à voir”
Charlotte Delbo, “Auschwitz and after”.

“As coisas são descobertas por intermédio das lembranças que se têm delas. Relembrar uma coisa significa vê-la- apenas agora- pela primeira vez”
Cesare Pavese, Diário.

Em O Que se Move (no tempo), o jogo consiste em reter, do trânsito imemorial e inelutável de tudo e de todos – no caso, dos filhos – um presente; um “presente” para nós, um presente para ser fruído e contemplado, resguardado em nosso presente. Esta é a démarche (o credo?) do filme de Caetano Gotardo: a intensiva conversão da percepção ao presente, ao único istmo do tempo que podemos tocar, reter, aconchegar em nós. E não é mal aqui lembrarmos da iluminada frase de Jean-Louis Schefer, em seu “O homem comum do cinema”: “O cinema é o único lugar onde o tempo nos é dado como uma percepção”. Como um presente presente – feito corpo…

O gênio entomológico e behavorista do cinema aqui é posto a serviço de uma poética da evanescência: observamos longa e gravemente uma presença que logo não mais será… Assim, este estatismo zumbi que aprisiona o menino à sombra do quarto, no plano inicial – aconchegado, embalsamado, por um instante; um fio de presente bastará, numa arte feita de presentificações como o cinema (fade in; fade out; contracampo; fora de campo que se materializa no campo sem no entanto estar presente, como efeito de) para eternizar um ente. No próximo contracampo, já foi aspirado pela janela…

Mesmo um gesto que se escande e hesita: a mãe, à porta, quando entrefecha os lábios e abaixa os olhos: “Tenho sentido os olhos quentes”. Pausa. Fixação,  tentativa de interpor ao curso trágico de Cronos, a maravilha “suspensiva” de Kairos, instante de Revelação: “Tenho sentido os olhos quentes”. Ponto. A citação brechtiana – gesto que teria por função designar o próprio ato de gestificar, enfatizando a encenação, o Dizer do Dito –  aqui vira emblema de resgate e refúgio; uma forma de magicamente transformar a linha reta e impostergável do tempo “teleológico” no círculo aconchegante dos Primórdios: o útero, a cova… não terão a mesma forma? Não conjuram o mesmo enlace, matricial e erótico?

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Outra fixação, outra tentativa de resgate do ser ao Vácuo do tempo; a brincadeira da família no parque: estaca e corre, estaca e corre… fogem do que? Ou a coreografia, entre Tati e Straub, dos funcionários da delegacia, embalados pelo canto da primeira mãe? Autômatos espirituais onde se esculpe a figura de um ausente? Onde um fantasma se manifesta uma última vez, e dança? A mecânica em ação em certos trechos do filme consiste numa estranha operação mediúnica, na qual o corpo vivo tenta esposar o devir do inanimado – na qual o presente se torna o invólucro do Nada… Um tempo que se debruça longamente, o presente que puder, sobre estas vagas de ser e de Nada que flutuam sobre o mundo: é preciso talhar em alto-relevo no cadre do plano estes gestos e figuras, antes que… Todos os personagens de O Que se Move tendem à iconização, aspiram ao “ser efígie”… é seu bônus de Eterno: No pasarán. O cisne, a árvore-totem, a relvaa princípio, a câmera neles inscreve uma écriture do desastre, para glosar Blanchot; a iminência do contracampo é sinônimo de Morte… mas lembremo-nos deles ao final do filme…

O Que se Move (no tempo) é um filme que se volta e olha para trás, um carpideiro do campo, do campo que passou, atropelado pelo contracampo: como o contracampo do menino que se volta e é surpreendido pela árvore. A menina até então presente já não é? Velho, imemorial jogo… Quando o rapaz se distancia no horizonte do parque, é uma última vez. Daí o tempo com que o plano é macerado, curtido; precisamos registrar este momento definitivo e definidor. O plano fixo, o tempo em vigília – algumas e preciosas vezes o cinema urdiu este estratagema – fixidez do plano, estagnação do tempo – para figurar o infigurável, a saber: que o tempo é a cova de todo corpo, e o espaço, um mero rastro no rastro do Nada. Alguns filmes, algumas analogias: Chaplin e suas constantes incursões em direção ao horizonte (que não por acaso coincidem com o Fim do filme); a plongée sobre a cova de um personagem em Track of the Cat (William Wellman), com a família em torno, espiando, graves e absortos, o que os aguarda, talvez em cinco, talvez em cinqüenta minutos; o plano geral, fixo e frontal da família reunida em Ordet, com os faróis do carro do médico (que prometera o restabelecimento de Inger, morta dali a dois minutos) refletindo-se na parede dos fundos. O cinema nasceu para isto mesmo: para captar os primeiros vagidos e os últimos suspiros. Sim: arte auspiciosa e agônica. E entre eles, todos os retalhos e resquícios da duração, esta matéria primeira (porque imaterial) que qualifica soberanamente uma arte votada, na palavra de Vachel Lindsay, “à luz e à velocidade”.

A criança, observada longamente, enquanto brinca com o ar e percute as palavras da mãe… “Presente”. Logo soçobrará – já sabemos das notícias pelo jornal, já sabemos do que o filme trata – e isto é o essencial: é fundamental sabermos que “logo, logo estes seres soçobrarão”; só assim saborearemos o gosto, sucumbiremos à vertigem deste momento último – pois um presente é antes de tudo um entre-deux, um interstício entre o Nada e o Ser… cinema, arte fantasmagórica: campo e fora de campo; quadro e fora de quadro; campo e contracampo… já não disse isto? Sim; mas eu também sinto pressa e deleite em fixar o presente desta escrita (para que servem todas estas operações, afinal?), em reiterá-la, em repetir-me… antes de passar.

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Cabe aqui um parênteses, ontológico e etimológico – um comentário acerca do significado do termo Presença. O termo grego Parousia – Advento de uma Presença, Vinda, no caso a Segunda presença de Cristo na Terra, pós-Ressurreição – teve uma grata posteridade metafísica no Ocidente. Inspirado por este por-vir “feito carne” (na figura de um Messias encarnado), o Ocidente foi sempre orientado por um telos, por fins que designariam um horizonte utópico de reconciliação ou plenitude: o fechamento de um círculo, apocalíptico ou redentor. Mas, como em tudo na vida, que é sempre questão de tradução e de translação, houve em nossa vivência da Parousia grega, agora cristianizada e romanizada, um desvio (inflexão? perversão?) decisivos. Para-ousia não designava, a princípio e por princípio, a segunda vinda, futura e certa, de um homem – mesmo o Filho de Deus. Parousia é uma construção verbal, não substantiva, e significa “ser próximo, ao lado; ser presente”. O Cristo, se Cristo houvesse, já é entre nós; é um presente (verbo). E a língua, como sempre, assinala-nos o caminho das pedras (ou das nuvens): o que queremos dizer quando damos um “presente” a alguém? O que esperamos desta pessoa, ao lhe presentear com um presente? Permanecermos presentes para ela, quando, anos depois, ela abrisse a caixa, e em júbilo nos re-descobrisse ali, ao fundo de tantos pretéritos imperfeitos que a vida percorre e a morte sufraga… Daí a importância seminal da conversão em São Paulo: trata-se não de esperar o fim do mundo para encontrar a  redenção – ou nela esbarrar, cegos ao mundo presente que somos; a conversão significa ver com outros olhos o que já é, enxergar a vida sob um diapasão messiânico, radicalmente temporal.

E o que isto quer dizer? Fruir cada beijo, aspirar toda flor e aconchegar-se em cada peito como se fossem acabar, como se estivessem à espreita do último minuto… A conversão é uma operação hermenêutica que consiste em interpretar a vida da forma como o Divino o exige: como um restinga à beira do abismo do tempo, que a todo custo é preciso cultivar, velar por… porque vai acabar. (“Ela passa, a figura deste mundo, a maneira de ser deste mundo está passando”, São Paulo, Coríntios 7, 31). Ênfase no passando… No filme de Gotardo, destas tentativas de reter o que se move (no tempo) – a iconização do gesto, a duração “estagnada”, a coreografia em stacatto… qual o melhor refúgio (escrínio, habitação) para o morto iminente? Qual o selo de presença mais espectralmente temporal, fluido e rarefeito, senão o canto? Nele, a presença se mantém em sua integridade de promontório temporal – frágil, setemezinho, como lambe João Cabral – à beira das Cila e Caribde da Eternidade.

No canto, o que passa (ou se move) é restituído em seu “meio de cultura”, seu modus vivendi essencial: passageiro, transitivo. Música, a mais metafísica das artes – dionisíaca e apolínea em um mesmo e outro movimento: matemática e Graça – é o tool mais adequado, infinitamente adequado, ao resgate da finitude; ao seu In memoriam, pelo menos… O Que se Move usa a música em mão dupla: como lamento fúnebre e finalmente, na última canção, como estigma da reconciliação. A canção que encerra o filme dá à música um acorde benfazejo: aqui, a mulher não acusa o marido, a mãe não recrimina a polícia pela perda do filho; o pathos beligerante do ressentimento é substituído ( suprassumido?) pela rarefação da elegia, o Attacca subito pelo Intermezzo lirico: o filho reencontrado alicia e recolhe em seu corpo adolescente a todos os outros filhos, esquecidos, extraviados… Atinge-se, neste canto em pianinho que um crescendo vai transfigurando, uma atmosfera de leggerezza e claridade  que corresponde à la lettre ao significado etimológico (lá vem ele de novo!) de Espírito. Pneuma, Anima: Ar, sopro.

Se o filme até então se fixara, detida e melancolicamente, nas presenças dos filhos “uma última vez”, aqui o caminho se inverte, e se promete: é a primeira vez, depois de tantos anos… Agora, é necessário revê-lo, seguindo a trajetória da experiência, descrita e reglosada tantas vezes desde Hegel: de frente para trás… os planos da Natureza – o pato, árvore, o parque, enfim: o Outro – devem ser filtrados por esta primeira vez que encerra O Que se Move – e transfigurados pelo credo de esperança e renovação deste canto maternal, entrevistos como signos premonitórios de uma retomada do mundo – no mundo, com o mundo… Uma inocência do olhar é recuperada, mas apenas às custas (e ao fim) de uma trajetória de luto… e não é assim, na vida? Qualquer pessoa que sobrevive a uma UTI sabe que vai dar o primeiro passeio pela cidade com o Messias segurando em seu braço…

… Em alguns momentos, porém, O Que se Move parece não ter suficiente crença em suas imagens, seus presentes encarnados – a  mesma crença que espera de nós na eminente função do plano como instância de manifestação. Há aqui e ali um excesso de retórica, uma desnecessária reiteração do discurso; como em tantos belos Bergmans, no entanto maculados pela logorréia… o diálogo do casal no parque, o “texto” recitado pela mãe à criança “que não mais será presente”, e sobretudo a metáfora final dos atletas na tela da televisão, quando a experiência de superação do luto materno é refletida/decalcada por uma imagem literal… só me pergunto o porquê desta necessidade de dizer o mostrado (ou de dizer como este se mostra), de literalizá-lo – quando o filme justamente consegue nos mostrar tudo (pelo menos ao que o olho humano é possível suportar), o infra-visível – a ontologia bruta destas paisagens humanas e naturais, percorridas com vagar e carícia; como o “supra-visível” da significação, seus sinais de pontuação e notas de rodapé – a corrida “estaca-corre”da família, a dança dos funcionários da delegacia –, quando a “performance” se integra à ontologia como meio de dialetizar as suas tendências à deferência bovina para com o Ser. O cinema soube elaborar, ao longo de sua História, meios eficazes para emular a poesia, por exemplo – esta arte de interstícios, de sugestões e analogias, de infiltração do infigurável na Figura, de aliciamento do visível pelo invisível: a elipse, para citar um. Intermitência, alternância, aparição e desaparição, velamento, Revelação… O termo revelateur em fotografia já entrega tudo. Ou enfim, todos os jogos com o fora de campo que já estamos cansados de enumerar em Duras, Straub, Akerman, etc. Estes “jogos” e metáforas especificamente cinematográficos não são explorados aqui com a devida intensidade – a eles, substituem-se figuras retóricas mais simplistas ou literais…

… Mas O Que se Move consegue um prodígio invulgar – e talvez os últimos cineastas brasileiros que se lhe comparem neste quesito sejam o Coni Campos de O Mágico e o Delegado, o Saraceni de O Viajante, o Navarro de O Homem Que Não Dormia. Em outros tons e diapasões, mas mesmo assim: é saber espreitar e fazer germinar, numa arte materialista, as possibilidades de inervação metafísica e assombro epifânico tão bem expressas na admirável prece de Merleau-Ponty: “Nós não temos um corpo. Nós somos um corpo”. Nos três filmes citados, o espectral, o maravilhoso, o numinoso nascem de um aprofundamento de experiências radicais da imanência, da carne e suas mazelas: a “sujeira” e anarquia dos personagens de Navarro, a trágica demoníaca Ana Lara no filme de Saraceni , o lado bruto documental da féerie de Coni Campos… Em O Que se Move, a magia nasce deste escrutínio microscópico dos instantes que se lançam em direção ao Nada… deste corpo (presente) que passará, como tudo – relvas e deuses, e ditos… mas a Presença que um dia o acolheu, não.

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